TODA CIDADE TEM SEUS PERSONAGENS.
A RUA CHILE FOI O DOMÍNIO EXCLUSIVO DA MULHER DE ROXO.
ESTE É OUTRO PERSONAGEM CURIOSO DO CENTRO HISTÓRICO.
ACABOU EXPULSO PELA POLÍCIA FEDERAL...
Olympio me telefona: “Tomei a liberdade de dar seu endereço a
um arcebispo da Austrália que pretende comprar uma casa no Santo Antônio.” Deste velho amigo, qualquer um seria bem-vindo,
mais ainda um representante da Santa Sé. Imaginem: alguém que deve sentar na Capela
Sistina fora do horário de visita!
Não demora em ouvir o timbre da entrada. Mando subir o ilustre prelado
até a sala do primeiro andar onde costumo receber as visitas mais privadas. O
homem é alto, pesado, aloirado, pequenos olhos fundos colados ao nariz. Veste
preto e sobre a camisa branca destaca-se um crucifixo de madeira de bom
tamanho. Apresenta-se como Stanislas Poniatowsky, arcebispo em XXX, na
Austrália. Na minha deprimente ignorância, nunca ouvi falar desta cidade.
- O senhor é de origem russa?
- Não. O nome é polonês.
Boa resposta, pois se trata de histórica família principesca
de Varsóvia. Pelos acasos de minhas andanças por este planeta, tropecei em
alguns herdeiros da antiga dinastia. Pergunto qual o parentesco com Pierre, Helena ou
Michel. Desta vez as respostas são mais escorregadias. Não insisto, vamos ao
que interessa.
- Então o senhor (por estranha reticência que só Jung poderia
explicar, não consigo dar ao visitante seu título de Monsenhor) pretende
comprar uma casa no bairro... Mas por que tão longe de seu rebanho?
- É que vou me aposentar e gostaria de trabalhar em projetos
sociais.
- Então deve haver bairros mais indicados, na cidade baixa,
por exemplo.
- Não. Pretendo também aprofundar certos aspectos da história
da arte.
- Que interessante! Qual é seu campo de pesquisa?
- A arquitetura românica...
Silencio. Não estou acreditando.
- Românica, aqui no Brasil?
- Bem... eu também gosto de arte barroca.
Começo a sentir as comichões
do ceticismo invadir minha boa fé.
- E já encontrou uma casa por estas bandas?
- Sim, até com piscina.
- Com piscina aqui na rua? Só conheço uma casa que tem uma
banheira com ambição a tal, com menos de quatro metros de longo.
- Não, não! É uma boa piscina.
- Posso ser indiscreto e saber quanto pedem pela casa?
- Uns chiz mil reais.
- Como? Mas é um preço absurdo! Não vale nem a metade!
- Não importa. Não acho muito caro. Além do mais são bons
cristãos.
Argumento redibitório. Este homem é um santo. Resisto dificilmente ao
impulso de me ajoelhar.
- Então, entre as obras sociais e o estudo do barroco, não
vai sobrar tempo para mais nada...
- Pois é. Mas sempre é melhor do que passar o dia todo com
putas!
Ai, quase me engasgo com a implacável lógica do argumento. O
semblante do religioso permanece impassível. Levanto-me, significando o fim da
audiência, estendo a mão e amavelmente indico a saída.
Ainda o cruzarei por muito tempo pelas ruas do bairro, às
vezes vestindo uma batina recém costurada como quem vai celebrar missa, sorriso
angélico nos lábios. Finge que não me vê.
Pouco antes do carnaval, lá estava ele, perto de minha casa,
sentado no degrau de um velho casarão da ladeira do Boqueirão, comendo
quentinha, garfo de plástico, a sonhar, quem sabe, com celestiais festas de
anjos e diabólicas orgias funk...
Dimitri Ganzelevitch Salvador 21 de março
de 2010.
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