quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O IMPÉRIO DA LUZ BRANCA

O império da luz branca em tempos de trevas

Raul Moreira
Jornalista e cineasta

Resultado de imagem para FOTOS ILUMINAÇÃO DE SALVADOR

Os italianos Guido e Marco, moradores de Trastevere, famoso bairro boêmio situado no coração de Roma, vivem juntos há pouco mais de quatro décadas. Conheceram Salvador lá pela metade dos anos 70. Deram-se um presente e, com o filho adotado, voltaram à capital baiana em busca de algo que denominaram de “conjunto de reminiscências”, o que certamente engloba as suas memórias afetivas, olfativas, táteis e visuais.
Não são ingênuos os dois, muito menos saudosistas: tinham certeza que se deparariam com outra Salvador. O curioso é que, apesar do aumento populacional, do número de carros, do inchaço da cidade e da transformação do espírito da gente, o que mais chamou a atenção de Guido e Marco foi a iluminação da metrópole, tomada em parte por luzes LED, uma “praga” que já encontra forte resistência na Europa.
Queixaram-se da iluminação branca de alguns bares da Barra, como também da “passarela” da Avenida Oceânica, sem falar da pousada onde se instalaram, tanto que a denominaram de “hospital”. E, naturalmente, perguntaram-se o porquê da cidade conviver com uma luz tão invasiva.
Homens das ciências sociais e pesquisadores, logo descobriram, perguntando a um e a outro, que o império das luzes brancas tem origem no início dos anos 2000, quando uma crise energética atingiu o governo FHC e obrigou os brasileiros a racionar energia. Naturalmente que uma das formas de diminuir o consumo foi trocar as lâmpadas incandescentes – hoje fora de circulação – pelas fluorescentes, muito mais econômicas, nas suas versões tubulares e, agora, compactas.
O diabo é que, apesar de já existir no mercado muitos modelos de lâmpadas fluorescentes, as quais emitem uma tonalidade amarelada, em Salvador, como no restante do Brasil, a luz branca veio para ficar e caiu no gosto comum. Assim, desde a iluminação das vias, às residências, a luz branca tornou-se praticamente absoluta, ainda que, internamente, o recomendável seja que esse tipo de luz alumie apenas escritórios, hospitais e repartições púbicas.
Independentemente do mau gosto e dos equívocos na sua utilização, uma vez que pesquisas realizadas na Europa comprovaram osmalefícios da iluminação intensiva LED para o meio ambiente e a saúde da população, por causar diabetes, obesidade e câncer (mama e próstata), o império da luz branca gerou uma quebra de tradição, uma ruptura imagética, principalmente quando se trata da centenária Salvador. E, o casal Guido e Marco, que a conheceu em outros tempos e se alimentou de sua “penumbra”, sentiu-se órfão.
Não que Guido e Marco preguem a volta das lamparinas à base de óleos vegetais e animais, dos lampiões a gás, não. A questão é que a iluminação de uma cidade antiga, como é a capital da Bahia, com suas ruas, casas, igrejas e monumentos centenários, deve seguir uma linha que a valorize, que a realce, que torne viva a força de sua arquitetura, algo que a luz amarela favorece, ao contrário da branca.
Sim, a luz opaca, no seu amarelo mágico, serviu de alimento para Jorge Amado e João Ubaldo nos seus romances que imortalizaram a Bahia, como também inspirou o cineasta Roberto Pires em Tocaia no Asfalto, ou mesmo ajudou Carybé na composição do quadro A noite. E o que falar do poeta desconhecido que andava nas noites uivantes de agosto pela mal iluminada Avenida Oceânica a construir versos a respeito de um farol no fim do mundo?
Como dizem Guido e Marco, Salvador parece se transformar a olhos vistos em um gigantesco playground de iluminação LED, em um mundo desprovido de mistérios e onde a arte de enxergar além da penumbra é coisa do passado. Em outras palavras: a gestão pública, na fantasia de que a tornará mais segura com luzes intensivas, postas sem critério e de forma muitas vezes equivocada, está matando o espírito da cidade, roubando o seu encanto e desconstruindo os seus mistérios.
Então, Salvador, cidade de uma incomum luminosidade diurna, que muda os seus tons de estação para estação, tornou-se pálida à noite, como se fosse um imenso fantasma a encobrir seus casarios, igrejas, becos, vielas e até os arranha-céus de arquitetura duvidosa, tornando-a estranha, desbotada.
Na sua ironia cortante, Guido, na melhor tradição da “sinistra” italiana, diz que o império da luz branca não deixa de ser uma ironia em um Brasil que mergulhou  numa  escuridão que parecia improvável até há pouco tempo.

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