sexta-feira, 5 de maio de 2017

CAETANO FALA DE BELCHIOR


Resultado de imagem para FOTO DE CAETANO COM BELCHIOR


A última vez que vi Belchior foi em São Paulo, pouco antes do seu famoso desaparecimento. Ele me procurou e conversamos bastante. Me trouxe de presente dois retratos de Drummond desenhados por ele, muito sugestivos e profundamente sentidos. Achei significativos a visita e os presentes. Nunca me esqueço de sua entrada no palco do teatro João Caetano, quando o vi pela primeira vez. Ele veio da coxia quase correndo e gritando, antes da introdução da banda: "Quando me lembrei já estava em cima da hora!" Era a frase que Gil diz na abertura de minha Irene, ao perceber que tem que recomeçar (Gil toca violão em todas as faixas do disco que gravei em Salvador depois da prisão, durante o confinamento, antes de irmos para fora do país). A tirada de Belchior era mais uma das referências irônicas que ele fazia ao tropicalismo. Tinha uma beleza poética imensa, como muitos dos versos de suas canções. A chegada à cena do "pessoal do Ceará" teve como uma de suas marcas a intenção de exibir confronto com os tropicalistas. Sugeriam que nós, os baianos, já representávamos o estabelecido, o velho, enquanto eles seriam o novo e a verdadeira rebeldia. Me parecia uma interessante reação ao habitual "tudo amiguinho, tudo certo". No estilo de Belchior, soava justo. O tropicalismo se opôs à bossa nova louvando João, Jobim e Lyra. A bossa nova se opôs à bossa velha louvando Caymmi, Ary e Bide&Marçal. O pessoal do Ceará queria opor-se mesmo. Não chegava a isso e a recusa à louvação teria ficado vazia não fosse o talento e a personalidade de Belchior. 


O belo "Pavão" (Pavão Misterioso) de Ednardo era psicodélico e nordestinista. Ou seja: nada que o tropicalismo já não tivesse sido. Fagner era, quanto a todas essas questões, indefinido. Belchior esboçava um estilo anti-sixties, sugeria uma volta aos fifties como prefiguração os eighties. 


Eu amava (e amo) Mucuripe. A frase musical que sustenta o verso "Vida, vento, vela leva-me daqui" é tão bela e adequada que dois dos maiores cantores do Brasil não conseguiram chegar à sua altura. Mas Mucuripe era uma canção "clássica", atemporal. Ela trouxera os cearenses ao reconhecimento público, mas não representava ruptura. As músicas que Belchior assinou sozinho fizeram isso. Todas as citações a canções nossas que estavam em trechos de canções de Belchior me agradavam por estarem dentro de um timbre criativo sempre rico e instigante. Muitas entrevistas de Fagner desmereciam a força estética que era evidente em Mucuripe e em Belchior. 



Como Nossos Pais é uma das melhores interpretações de Elis. Também Velha Roupa Colorida é algo coeso e forte. Mas tudo isso ficava mais interessante ainda quando na voz do autor. É que a escrita em si, o material que ele apresentava, era de boa qualidade. E o som da sua voz, reiterado por sua figura, dizia o que ele queria dizer. Seria gozado ouvir, em Apenas um Rapaz latino-Americano, um "nada é divino, nada é maravilhoso", como se a frase do "antigo compositor baiano" lembrada por quem canta já não fosse amargamente auto-irônica quando foi inserida no retrato cubista de uma passeata de protesto contra a ditadura militar - e não precedesse o refrão "É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte" - mas as dubiedades de Belchior são deliberadamente desorientadoras e estão ali mais para marcar a passagem do tempo e anunciar novos ventos de estilo. Quando as músicas fizeram sucesso e os discos venderam, Belchior aparecia nas festas ao lado de André Midani usando ternos finos, fumando charutos caros e falando na cultura da "Rive Gauche". Depois, as Paralelas enchiam o ar das cidades. Eu próprio (que já chorara com Como Nossos Pais num teatro em São Paulo, vendo Elis) chorava no carro. O confronto que lhe pareceu necessário vinha eivado de amor. E não apenas amor transmutado em ressentimento. Não é por acaso que Belchior é lembrado e louvado por gerações sucessivas. Suas canções não são das que morrem. Ele prefigurou os anos 80 em termos globais e se instalou na memória profunda da história da criação de música popular no Brasil. As pessoas que enchiam os teatros a cada reaparição do bardo cearense entendem o sentido dessa história.

11 comentários:

  1. Voce Falou tudo Caetano , voce realmente endedeu o Poeta na íntegra . E digo mais ; Quando voce diz que em " Muitas entrevistas o Fagner ,desmerecia a forca estética que era evidente em Mucuripe e em Belchior " , nossa !!! que persepcao a sua . Simplesmente Fantastico .

    Marfiza Ludowig
    Munique /Alemanha

    ResponderExcluir
  2. Mucuripe é a música do Ser em si... como não admirar. Obrigada pelo texto que reverencia quem merece. Obrigada Belchior. Obrigada Caetano.

    ResponderExcluir
  3. Faltou falar como suas músicas foram Transformadoras da sociedade num momento é preciso ter muita inteligência para passar mensagens contra a Ditadura de maneira sutil, hoje a mídia cala tentativas de sucesso de músicas que tente abrir os olhos da população para mar de corrupção que estamos sendo afogados!!!

    ResponderExcluir
  4. Graças a Deus e a genialidade de uma imensa legião de músicos, interpretes e compositores... músicos geniais vinham de todos os estados minha geração teve muita sorte com a riqueza musical que usufruiu nos anos 70/80/90 direto do rádio... minha geração pode vaiar o gênio Chico Buarque e Sábia pois queria Caminhar e cantar com Vandré... Perdemos um grande poeta que como tanto outros ídolos de nossa juventude foram pulverizados pela indústria da porcaria fonográfica de gravações baratas e de gosto duvidoso ... sem saudosismo quero mais e de novo poesia e musicalidade, nós merecemos! Quero mais Lívia Nestróvisky, Monica Salmaso, Patty Asher

    ResponderExcluir
  5. Muito bem. O que podemos também reverenciar, além das letras, são suas melodias. Sobretudo do disco Mote e Glosa. Ademais, aquele efeito de torno/armador de rede balançando, além da profunda letra de "Na Hora do Almoço", já me levavam às lágrimas antes da sua perca. Muito saudosismo envolvido. #BelchiorVive

    ResponderExcluir
  6. Caetano, sempre genial, um ídolo analisando outro grande ídolo. Belchior é Caetano, juntos com Renato Russo formam um belo trio de Eclesiastes modernos, sustentando a estrutura da música mais avante.

    ResponderExcluir
  7. Caetano grave uma musica de Belchior seria uma homenagem eternizada como esta "Quando eu não tinha o olhar lacrimoso que hoje eu trago e tenho quando adoçava meu corpo e gosto no bagaço de cana do engenho"Parabéns Caetano pelo belo e claro texto

    ResponderExcluir
  8. Mesmo assim considero-o tripulante da Caetanave

    ResponderExcluir
  9. Pena que pouca gente já ouviu tudo de Belchior!

    ResponderExcluir