Fernando Gabeira,
O Estado de São Paulo
11/04/2014
As coisas andam esquisitas. Ou sempre estiveram, não sei. Dia agradável de trabalho na Serra da Canastra, revisitei a nascente do São Francisco e vi uma loba-guará se movendo com liberdade em seu território. De noite sonhei com o PT. Logo com o PT.
Sentei-me na cama para entender como os pesadelos do Planalto invadiam meus sonhos na montanha. Lembrei-me de que no início da noite vira a história de André Vargas e do doleiro Alberto Youssef na TV, os farmacêuticos do ar que vendiam remédios dos outros ao Ministério da Saúde. Pensei: esse Vargas é vice, no ano que vem seria presidente da Câmara dos Deputados. Como foi possível a escalada de um quadro tão medíocre? A resposta é a obediência, o atributo mais valorizado pelos dirigentes, antítese de inquietação e criatividade, sempre punidas com o isolamento.
Vargas fazia tudo o que o partido queria: pedia controle da imprensa e fazia até o que o partido aprova, mas não ousa fazer, como o gesto de erguer o punho na visita do ministro Joaquim Barbosa, do STF, ao Congresso. Em nossa era, esse deputado rechonchudo, que poderia passar por um burguês tropical, simboliza o resultado catastrófico da política autoritária de obediência, imposta de cima.
Num falso laboratório, com o nome fantasia de Labogen (gen é para dar um ar moderno), Vargas e Youssef tramavam ganhar dinheiro vendendo remédios ao ministério. O deputado, que ocupava o mais alto cargo do PT na Câmara, trabalhava para desviar dinheiro da saúde! É um tipo de corrupção que merece tratamento especial, pois suga recursos e equipamentos destinados a salvar as pessoas. A corrupção na saúde ajuda a matá-las.
A catástrofe dessa política autoritária se revela também na escolha de Dilma Rousseff para suceder a Lula. Sob o argumento de que os quadros políticos poderiam abrir uma luta fratricida, escolheu-se uma técnica com capacidade de entender claramente que Lula e o PT fariam sua eleição. A suposição de que o debate entre candidatos de um mesmo partido seria ameaçador para o governo é uma tese autoritária. Nos EUA, vários candidatos de um mesmo partido disputam as primárias. E daí?
Lula sabia que um quadro político nascido do choque de ideias seria um sucessor com potencial maior que Dilma para ganhar luz própria. E a visão autoritária de Lula – sair plantando postes nas eleições, em vez de aceitar que novas pessoas iluminassem o caminho – contribuiu para a ruína do próprio PT.
Tive um pesadelo com o PT porque jamais poderia imaginar que chegasse a isso. Os petistas, aliás, carnavalizaram uma tradição de esquerda. Figuras como André Vargas erguem os punhos com a maior facilidade, como se estivessem partindo para a Guerra Civil Espanhola na Disneylândia. E os erguem nos lugares e circunstâncias mais inadequados, como num momento institucional. Um vice-presidente não pode comportar-se na Mesa como um militante partidário. O correto é que tivesse sido destituído do cargo depois daquele punho erguido. Mas o PT e seus aliados não deixariam o processo correr. Ele são fortes, organizados, bloqueiam tudo. Será que essa força toda dará conta do que vem por aí?
Estamos em ano eleitoral e Dilma, nesse cai-cai. É compreensível que as esperanças se voltem para Lula como salvador de um projeto em ruínas. Mas como salvar o que ele mesmo arruinou? O esgotamento do projeto do PT é também o de Lula, em que pese sua força eleitoral. Ele terá de conduzir o barco num ano de tempestades.
Para começar, essa da Petrobrás, Pasadena e outras saidinhas. O vínculo entre Youssef, Vargas e a Petrobrás também está sendo investigado pela Polícia Federal. Mas a relação do doleiro com o governo não deveria passar em branco. Num dos documentos surgidos na imprensa, fala-se que Youssef estava numa delegação oficial brasileira discutindo negócios em Cuba. Por que um doleiro numa delegação oficial? Por que Cuba?
Muitas novidades estão aparecendo. Mas essa do André Vargas, homem influente no partido, um farmacêutico do ar que neste momento deve estar erguendo os punhos no espelho, ensaiando para ser preso, interrompeu meu sono em São Roque de Minas com uma clara mensagem: o PT é um pesadelo.
Tenho amigos que ainda votam no PT porque acham ser preciso impedir a vitória da direita. Não vejo assim o espectro eleitoral. Há candidatos do centro e da esquerda. Que importância tem a demarcação rígida de terrenos, se estamos diante de fatos morais inaceitáveis, como a corrupção na Saúde, o abalo profundo na Petrobrás, a devastação da nossa vida política?
Cai, cai, balão, não vou te segurar. Estivemos juntos quando os petistas eram barbudos e tinham uma bolsa de couro a tiracolo. Mudou o estilo. Agora têm bochechas e um doleiro a tiracolo. Naquela época já pressentia que não ia dar certo. Mas não imaginava essa terra arrasada, um descaminho tão triste.
É um consolo estar nas nascentes do São Francisco, ver as águas descendo para a Cachoeira Casca Danta: o lindo movimento das águas rolando para sentir a mudança permanente. Sei que essa é uma ideia antiga, de muitos séculos. Mas para mim sempre foi verdadeira. É o que importa.
Uma das grandes ilusões da ditadura militar foi interromper a democracia supondo que adiante as pessoas votariam com maturidade. A virtude do processo democrático é precisamente estimular as pessoas a que aprendam por si próprias e evoluam.
As águas de 2014 apenas começaram a rolar. Tanto se falava na Copa do Mundo como o grande teste e surge a crise da Petrobrás. Poucos se deram conta de que, com os sete mortos nas obras dos estádios brasileiros, batemos um recorde de acidentes em todas as Copas. De certa forma, são vítimas da megalomania, do ufanismo, de todas essas bobagens de gente enrolada na Bandeira Nacional comprando refinarias no Texas, deixando uma fortuna nas mãos de um barão belga que nem acreditou direito naquela generosidade. Ergam os punhos cerrados para o barão e ele responderá com uma merecida banana. Gestualmente, é um bom fim de história.
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