Lido no jornal português Público. Até onde vai nosso desinteresse pela memória do Brasil!
"O acervo do arquitecto e urbanista brasileiro Lucio Costa (1902-1998), que concebeu a capital do Brasil em meados do século XX, já está em Portugal.
As últimas das cerca de 11 mil peças chegaram na semana passada, mas as negociações desta doação à Casa da Arquitectura — Centro Português de Arquitectura, em Matosinhos, está a ser tratada desde 2018, altura em que a família de Lucio Costa soube que não podia continuar a manter o espólio no lugar onde esteve guardado nas últimas duas décadas.
A vinda para Portugal de um arquivo com esta importância na história da arquitectura mundial — Brasília é património da humanidade desde 1987 e festejou no ano passado o seu 60.º aniversário — é uma nova conquista da Casa da Arquitectura, depois de ter recebido há um ano a doação do acervo de Paulo Mendes da Rocha. (...)
“Lucio Costa é um património de todos”
A doação do espólio de Lucio Costa, que concebeu o desenho da capital do Brasil, é o resultado do arquitecto e urbanista ser “um homem do mundo”, diz Ana Vaz Milheiro, crítica de arquitectura do PÚBLICO e também especialista em arquitectura brasileira.
O que é fundamental, diz quando comenta a doação a Portugal, é que o arquivo seja disponibilizado. “Que qualquer investigador em qualquer parte do mundo, seja português, seja brasileiro, ou de qualquer outra nacionalidade, possa ter acesso ao arquivo. É um ganho para todos que esteja na instituição que tiver melhores condições. Isto porque Lucio Costa não é uma figura só brasileira mas uma figura internacional da cultura arquitectónica. Lucio Costa é um património de todos.”
Brasília, inaugurada em 1960, é o culminar de uma série de teses que arquitectos e urbanistas debatem no mundo inteiro desde os anos 20 e que, finalmente, foi possível pôr em prática com a construção de uma nova capital.
“O que estava em causa era a construção de um mundo completamente novo e países como o Brasil tinham dimensão, capacidade política, condições económicas e humanas para o realizar. A Europa já não podia fazê-lo, estava comprometida pela sua história, pelo seu passado. Quando a capital é terminada, também pela história do Brasil, pela ditadura, percebe-se que obviamente a realidade é mais dura e que aquilo era uma utopia.
Brasília não deixará de ser muito criticada, mas é o culminar de um pensamento moderno e um projecto cultural que quer afirmar o Brasil à escala do mundo”, acrescenta.
Em Brasília, Lucio Costa acaba por transformar o legado moderno radical de arquitectos como Le Corbusier, um homem com quem colaborou várias vezes ao longo da vida e de quem se tornou amigo.
“Brasília não é completamente a tábua rasa de Le Corbusier. Como Lucio Costa tinha uma formação muito culturalista, ele nunca fechou completamente a porta à história e ao passado. Ele percebe é que a história e o passado podem ser o motor de uma coisa nova e que o Brasil pode ser a vanguarda disso.
Lucio Costa, como é brasileiro, pode fazer uso das heranças europeias como quiser. Tem uma liberdade que um europeu não tem. Ele nunca viu a arquitectura colonial como uma arquitectura portuguesa, mas já como uma adaptação ao território tropical. Por isso é que ele esteve sempre em condições de libertar o Brasil para ser o que quisesse.”
Quando Lucio Costa vem a Portugal, na viagem de estudo registada nos “Bloquinhos de Portugal”, também doados pela família tal como todo o restante espólio, já sabia o que ia concluir. “Que a arquitectura vernácula feita no Brasil colónia não tinha nada a ver com a arquitectura feita em Portugal. Os modelos que estavam na cabeça dos europeus chegaram aos trópicos e tiveram de se ambientar.”
E o mesmo destino teria a arquitectura moderna no Brasil, seja com o traçado culturalista de Brasília, seja com as curvas de Oscar Niemeyer.
Isabel Salema
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