sábado, 2 de abril de 2022

UMA MENTIRINHA PRESERVADA

Ana Virginia Pinheiro


De tempos em tempos, alguém inventa e começa uma estória que, embora pareça “mentira”, ganha alcance e impacta a vida de muitas pessoas. José Freire de Monterroio Mascarenhas (1670-1760), redator português, membro de quase todas as academias e associações literárias portuguesas de seu tempo, era um craque nisso. Escreveu durante mais de 40 anos na “Gazeta de Lisboa” e contava estórias que mandava imprimir e distribuía em folhetos avulsos, que anteciparam as fórmulas de sucesso da imprensa jornalística, fascinando seus leitores.

Em um dos folhetos, por exemplo descreve, um monstro que teria vivido no antigo Reino da Capadócia, na Ásia Menor e que tinha uma “forma horrível”.
Era alto, largo, de barriga curva, pernas grossas, pele escamosa, nariz comprido, parte do corpo coberta com penas cinzentas e de sexo indefinido. Os dedos das mãos eram curtos, com unhas fortes e muito compridas, e as unhas dos pés eram fendidas. O peito, sem pelos, resplandecia no escuro toda vez que o bicho respirava, projetando uma cruz, e a boca rasgada mostrava um osso no lugar dos dentes.
Tal descrição se completa com uma imagem xilogravada e a afirmação de que o dito monstro, entre todos que existiram em diversos tempos, é um dos mais raros.
E o povo acreditava...
Em pleno século XX, uma criatura bem semelhante, que atacava cabras a dentadas no pescoço, sugando-lhes todo o sangue, “apareceu”: o “Chupa-cabras”.
O bicho virou manchete do noticiário internacional, com depoimentos de pessoas que “achavam que o tinham visto”, em diferentes países – México, República Dominicana, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Panamá, Peru, Estados Unidos e Brasil.
Fico imaginando o quanto se difundiria a notícia de um “chupa-cabras”, no século XXI...
A biblioteca particular de Monterroio Mascarenhas, incluindo sua produção jornalística em folhetos, foi a terceira a ser incorporada à Real Bibliotheca portuguesa, após o terremoto de 1755. Essa biblioteca, assim como folheto citado, “Emblema vivente, ou noticia de hum portentoso monstro, que da Província de Anatólia foy mandado ao Sultão dos Turcos”, publicado em 1727, estão no acervo da nossa Biblioteca Nacional.

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