Muitos baianos já devem ter ouvido o nome da rua Caetano Moura na Federação, mas poucos sabem de quem se trata. Foi um escritor, tradutor, e médico (cirurgião do exército de Napoleão Bonaparte), um notável intelectual negro, baiano de Salvador, que teve uma história fantástica e que poucos conhecem devido ao apagamento histórico, acentuado pela invisibilidade ideológica concedida aos negros de destaque. Menos conhecidos, ainda, são seus livros que incluem uma "História do Brasil", "História de Napoleão Bonaparte", um livro de contos, dentre outros.
"Nasceu este notável publicista patrícia na cidade da Baía, aos 7 de Agosto de 1780, sendo filho de Maximiano Lopes de Moura, mestre carpinteiro, homem de côr, “sisudo e de sãos costumes”.
A custa de seus próprios esforços, conseguiu Caetano de Moura concluir os seus preparatório seguindo então para Lisbôa, onde tencionava matricular-se na Faculdade de Medicina, da Universidade de Coimbra. Abandonando posteriormente a ideia de estudar em Portugal, partiu Lopes de Moura para a França, onde depois de grandes dificuldades conseguiu concluir o curso medico em Paris. Tolhido pela necessidade, ingressou Lopes de Moura no exercito francês, como ajudante de cirurgia, passando-se depois para a Legião Portuguêsa que servia sob as ordens de Bonaparte. Tendo-se demitido do exercito, quando começou a decadência do império napoleônico, fixou Lopes de Moura a sua residência em Grenoble, onde se dedicou á pratica da medicina.
Sempre em luta com a adversidade, foi Lopes de Moura socorrido em Paris pela generosidade do imperador Pedro II, que lhe concedeu uma pensão, de maneira que o ilustre brasileiro pudesse continuar, sem embaraço, os seus trabalhos científicos e literários.
Já octogenário, faleceu em Paris, a 3 de Dezembro de 1860.
Caetano Lopes de Moura deixou numerosos trabalhos de historia, geografia, literatura e diversas traduções de obras estrangeiras. Deixou tambem uma interessante Auto-biografia, cujo autógrafo pertence ao Instituto Historico, que o possue por oferta que lhe fez o Marquês de Sapucaí.
Esta Auto-biografia, foi publicada em 1912 por Alberto de Oliveira, na Revista da Academio Brasileira de Letras (Ano III — n.° 8 — pgs. 273 e n.° 9 — pg. 75).
Dentre as muitas obras publicadas por Lopes de Moura, mencionaremos as seguintes:
Castrioto Lusitano — Paris — 1844.
Historia de Napoleão Bonaparte — Paris — 1846 — 2 vols, in 8.°.
Dicionario hisiorico, descritivo e geografico do Imperio do Brasil — Paris — 1845 — 2 vols. Este dicionario foi escrito por Milliet de Saint Adolphe, sendo traduzido para o português de um manuscrito inédito francês, com numerosas observações e edições do tradutor.
Cancioneiro alegre D’El-Rei D. Diniz — pela primeira vez impresso sobre o manuscrito do Vaticano — Paris — 1847 — in 4.°.
Os Lusíadas de Luis de Camões — Nova edição segundo a do Morgado de Mateus — Paris — 1847 — in 12.° — reproduzida em 1859.
Cartas d’Heloisa a Abailard, seguidas das cartas amorosas duma religiosa portuguêsa, restituidas á lingua materna por D. José Maria de Souza, Morgado de Mateus — Paris — 1838.
Fez ainda Caetano de Moura diversas traduções de Chateaubriand, Marmontel, Finimore Cooper, Walter Scott, Kotzbue, La Rochefoucauld, Babi, Sablms, Treville, etc.
Foi um pesquisador da literatura antiga, tendo contribuido com os seus trabalhos para enriquecer a literatura portuguêsa, como o fez, com a publicação das Cartas de uma Religiosa Portuguêsa, do Cancioneiro de D. Diniz, e da edição dos Lusíadas, segundo a do Morgado de Mateus. Nestas pesquisas o velho baíano ombreou com Odorico Mendes e F. A. de Varnhagen, sendo, como estes, um pesquisador honesto e operoso dos livros antigos e das curiosidades adormecidas no silencio dos arquivos e bibliotecas.
Caetano de Moura, muito embora houvesse passado quasi toda a sua existencia fóra do Brasil, jamais deixou de se preocupar com a sua patria, sobre a qual escreveu valiosos trabalhos.
O seu estilo, singelo e elegante, é atraente e revela qualidades de prosador. Como historiador, Lopes de Moura era meticuloso, detalhado, honesto, sem ter a preocupação de se mostrar erudito, qualidade aliás muito comum nos prosadores deste periodo.
Vejamos um fragmento do ilustre publicista baiano :
“Abalámos uma tarde de Kagram onde estávamos alojados, atravessámos á noite no maior silencio, por uma ponte ele barcas um braço do Danúbio, e fomos bivacar em uma das insuas ou mouchões, a que os francêses puzeram o nome ele Lobeau, do General deste apelido, por ser debaixo da direcção dele que se tinha obrado em um dia para outro aquela ponte, e outra em que na madrugada do dia seguinte, passámos outro braço do Danubio, encaminhando-nos para um lugarejo do nome de Wagram, que seria desconhecido se em sua visinhança, se não tivera dado a celebre batalha que dele se intitula. Não referirei os casos particulares desta facção por andarem já escritos com miudeza por diversas penas e pelos ter já resumidamente relatado em outra ocasião; demais que, enquanto de ambas as partes se pelejava com igual encarniçamento, não estava eu ocioso, pelo contrario, no meio da infernalidade de tiros de artilharia e de espingardaria, desestimando o perigo eminente, em que estava perto, desvelava-me no curativo dos feridos, quer fossem Portuguêses quer Francêses; o primeiro a quem tive de amputar o braço direito acertou de ser um colega meu desta nação, o qual se encaminhava para ‘Onde eu estava a correr e a bradar: Ou sont les docteurs?
Tinha-lhe uma bala levado a mão na ocasião em que ele fazia a outrem o beneficio que de mira se prometia. Como nesse mesmo tempo chovessem sobre nós os tiros, confesso que estremeci sobre o meu proprio destino e desejei ver-me dali longe; pungia-me porém o brio e fez com que me não torcesse, como fizeram muitos dos meus colegas e superiores, para onde o desejo me inclinava e fazendo á natureza forças, continuei no exercicio de minha profissão desde as dez horas da manhã até ás quatro da tarde, sendo tantas as amputações que tive de fazer, que estive a ponto de não poder concluir a derradeira por me sobrevirem vomitos, por não ter tido vagar para tomar a menor refeição; o que fiz, quando tendo concluído me subi num cavalo que havia na véspera comprado, e fui-me em demanda do regimento, o qual, com os demais que se achavam presentes àquela acção, se tinha adiantado no encalço dos inimigos. Assim que tive de atravessar o campo de batalha e o horroroso espectaculo que ele oferecia ainda se me não apagou de toda da memoria.
Requintam os homens em crueldade e cerram parelhas com as féras. Estava o campo todo estradado de cadaveres; seria porém impossivel estremarem-se os dos Francêses dos dos Alemães, que tão depressa os haviam desnuado, ou por cobiça dos despojos ou de industria para que as tropas que por ali passassem tomassem quantos vissem assim fazer, por alemães. Já se ia pondo o sol e dava-me pressa em me afastar daquela sangrenta, se bem dilatada campina, quando já quasi na extrema dela veio-me ao encontro um oficial General, acompanhado de quatro soldados de cavalo e mostrando-me um artilheiro francês, que a poucos passos dali jazia ferido, me ordenou houvesse de amputarlhe uma das pernas e entrega-lo depois a quatro soldados para o conduzirem ao hospital, acrescentando que sabia ser eu 0 Cirurgião-Mór dos Portuguêses e se queixaria ao Marechal, se eu não tivesse conta com aquele ferido, e assim dizendo se partiu”.
Caetano Lopes de Moura pertence ao numero dos mestiços brasileiros de origem modesta, que á custa de esforços proprios souberam elevar-se dignificando o nome de sua terra nativa. Aliás, no Brasil não foi pequeno o numero desses descendentes da raça negra que contribuiram com os frutos de sua inteligencia para a grandeza das artes e das letras patricias.
E o velho cirurgião do exercito bonapartista está, sem duvida, incluído neste numero."
PARANHOS, Haroldo. História do romantismo no Brasil. São Paulo: Edições Cultura Brasileira, 1937.
Nenhum comentário:
Postar um comentário