quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

NÃO SOU EU UMA MULHER?

"Não sou eu uma mulher?"
Perguntou Sojourner Truth durante a primeira Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres em Ohio em 1851. 

A importância do discurso dessa mulher negra, lutando à época pelo direito ao voto, foi essencial para fortalecer a militância feminina na luta por direitos. Ontem vi uma mulher negra ser reduzida a um guarda sol. Imagino que poderia existir dentro dela o questionamento anterior ao "não sou eu uma mulher?"; o seu questionamento seria: "não sou eu uma pessoa?" "Não sou eu humana?". 

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Ontem na praia do Leblon, ali no posto 12, eu e Amanda, minha amiga, estávamos aproveitando um fim de tarde na praia, quando observamos um fenômeno já muito conhecido de quem anda pela zona sul do Rio de Janeiro, o fenômeno das babás vestidas de branco. Impecáveis na sua obrigatoriedade em deixar claro que não pertencem àquelas praias. 

Uma mulher branca com uma criança de cerca de 2 anos estava com duas babás, mulheres negras, acompanhando sua ida à praia. Uma babá cuidava da criança. A outra se colocava atrás da patroa branca para barrar o forte sol que vinha de cima do Dois Irmãos. 

A segunda babá estava ali desumanizada para fazer as vezes do guarda sol que a branca rica achou que não precisava alugar, ou levar de casa para a praia, pois possuía sob seu domínio um corpo preto o qual ela usava como bem entendesse. 

Um brinquedo da criança caía ao seu lado, ela corria pra pegar, devolver e voltar para a mesma posição contra o sol, mãos nas costas, olhando para o horizonte. Não sei explicar a sensação que foi ver aquela cena. 
Não parecia realidade. 

Ficamos olhando, esperando aparecerem câmeras de algum programa de TV de mau gosto que estava na praia tentando polemizar sobre o absurdo do racismo. Não apareceram câmeras. Ficamos olhando, nos preparando para ir brigar, espernear, falar sobre a importância de trazer aquela mulher de volta à sua condição humana, fomos detidas pelo medo de gerar um mal estar numa relação de trabalho que certamente é essencial para essa mulher negra. 

Amanda, mais sábia e mais esperta, sugeriu que alugássemos um guarda sol e enviássemos lá anonimamente. Fizemos isso. A sinhá toda sorridente buscou logo o admirador secreto. Não encontrou ninguém. Percebeu que alguém notara o absurdo da sua prática, que certamente era habitual dentro de casa, mas que por um deslize, ela levou pra rua. Que seu racismo e seu classismo estavam escancarados no espaço publico, onde dedos poderiam ser apontados contra ela. Correu e se sentou enviesada embaixo do guarda sol. Ordenou que a babá se sentasse na areia da praia também. Que camuflasse rapidamente o flagrante. 

Mais tarde, fomos embora sem abraçar aquela mulher, sem fazer o barraco que estávamos armando, sem gritar, sem parar o trânsito, sem fazer todo o estardalhaço que merece ser feito ao se ver a vida duma mulher preta reduzida a um guarda sol. 

Esse texto, essas fotos e esse vídeo, são para dar a dimensão do tamanho do racismo que precisamos ainda enfrentar, da facilidade com que se passeia incólume pelas praias do brasil como se estivéssemos em 1850 com uma preta escrava a tiracolo. 

"Sei que vocês sentem comichões e vontade de vaiar quando veem uma mulher de cor se levantar e falar a respeito de coisas e dos direitos das mulheres. Nós fomos tão rebaixadas que ninguém pensou que iríamos nos levantar novamente; mas já fomos pisadas por tempo demais; vamos nos reerguer, e agora eu estou aqui"
Sojourner Truth

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