Flávia Azevedo: 'eu sou sobrevivente de um relacionamento abusivo', ela diz
“Eu sou sobrevivente de um relacionamento abusivo”, ela disse, num post, comemorando vida nova. Agora é a liberdade desaforada de quem venceu o algoz. Acabou! Era obrigada a dizer? Não, mas é bom que diga. É bom que não segure para sempre o pacote de merda entregue pelo homem com quem pensou viver um amor. A vergonha é dele e é assim que deve ser.
Eles não gostam disso e perguntam “pra que se expor”? Uma inversão proposital porque a pergunta dele é: “pra que me expor”? Não, você não se expõe quando entrega o seu agressor. É ele quem está exposto, é ele quem deve se envergonhar. Mesmo que a sua família não entenda, mesmo que amigos não entendam, mesmo que algumas amigas achem que seria melhor ficar calada.
É um trabalho longo esse de colocar cada coisa em seu devido lugar: vítimas denunciam, abusadores são punidos. Ainda que, por enquanto, apenas pela exposição. Cada mulher que perde a vergonha de dizer, é uma pedra a menos do castelo de silêncio onde vivem protegidos abusadores disfarçados de namorados e maridos amáveis. Eles sabem que estão por um fio.
A minha amiga assinou, junto com o divórcio, um documento em que se compromete a não publicar nada que possa ferir a imagem do ex. Ele morria de medo e achou um jeito de se “proteger”. Pois, se eu casar de novo, quero que ele assine documento estando ciente de que, se passar do ponto, perde a privacidade. Que estou liberada para publicar conversas íntimas, e-mails, bilhetes, o que for. Até o que, em condições normais, não seria legal.
Porque é assim que a gente se protege, é assim que mulheres reconhecem que, dentro daquela casa lá do outro lado do mundo, aconteceu o mesmo que acontece agora na casa dela e isso fortalece, dá coragem pra sair. É também assim que a gente se ajuda: dizendo que sobreviveu. É bom, é terapêutico, é libertador. Pode dizer, deve dizer. Em cima do lance ou anos depois.
Tem gente precisando ouvir o tempo todo. Tem menina começando a viver e ela precisa saber que namorado não decide a roupa que ela deve usar, a cor do batom nem aonde ela pode ir. Que ela não é obrigada a transar nem a deixar de transar. Que ele não pode levantar a voz, ”proibir” amizades. Que, se ele não gostar do jeito dela, pode apenas ir embora. Que ela é dela mesma e de mais ninguém.
Só mulheres podem ajudar nisso. Só eu. Só a moça que publicou no Facebook. Só a senhorinha que conta pra todo mundo que começou a cantar depois dos 60 anos porque viveu anos com um abusador que a queria em silêncio. Só nós todas juntas.
“Eu sou sobrevivente de um relacionamento abusivo”, ela diz, mas é mais do que dizer. É anunciar que ninguém tente outra vez, é medalha no peito, é orgulho, condecoração, é subir no palco e a multidão aplaudindo. A gente não quer viver morrendo e, se ainda vive, é por causa desse silêncio que é quebrado cada vez que uma mulher diz “eu sou sobrevivente de um relacionamento abusivo”. Obrigada, moça, por dizer.
Flavia Azevedo é produtora e mãe de Leo
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