Sob o título “O sistema dos objetos”, Jean Baudrillard escreveu um livrão que achei bastante soporífico, mas que certo conhecido meu, embora adepto da leitura dinâmica, em diagonal, afirmou conhecer detalhadamente. Alain de Botton também escreveu umas páginas interessantes sobre o tema. Sem embarcar em tão nobre cruzeiro, falarei de minha relação com os objetos. Relação que marcou minha longa caminhada, sem qualquer conotação de consumismo.
Tinha seis
aninhos quando encontrei uma moeda romana, moeda que, oitenta anos depois,
ainda está comigo. Aos quatorze anos fiz minha primeira compra numa feira à
beira do deserto do Saara. Seis peças toscas de barro. Se quiser vê-las, é só
chegar ao 185 da Rua Direita de Santo Antônio.
Da paixão pelo
objeto fiz o meu ganha-pão e âncora de minha vida. Mais que galerista ou
antiquário, fui um colecionador que aceitava, em certos momentos com
relutância, desfazer-se de parte do imenso bazar que foi sempre meu quotidiano.
Nesta praia de muitos seixos passeei minha incansável curiosidade, vez ou outra
achando alguma pedra rara.
Claro que
não estou falando de quaisquer objetos, senão daqueles que detêm um passado,
uma história. Neste prato de porcelana de Sèvres do fim do século XVIII, quem
será a jovem senhora retratada? Generosamente decotada, o lindo pescoço
terminaria na guilhotina ou conheceu os triunfos e as derrotas de Napoleão? E a
antiga toalha de banho turca, longamente lavrada a seda e ouro, de que serralho
terá escapado? O que levou a Emma Valle a pintar um casario sobre um pedaço
triangular de espelho?
Cada
ferramenta usada, cada desenho a nanquim mesmo desbotado ou escultura incompleta
é singular. Por quantas aventuras teve sua vida marcada? Muitos já nasceram e
morreram enquanto a mesma colher de prata continua mexendo o açúcar no fundo da
xícara de chá. Quantas mulheres, jovens e velhas, belas ou não, terão passado,
retocando uma madeixa rebelde ou a maquiagem pelo mesmo espelho bisotado que
hoje descansa no meu banheiro social? Meu fascínio pelo objeto até me levou,
vejam só, a colecionar tijolos com a marca da olaria, geralmente do século XIX.
Entre tantos, um ostenta a palavra ”Pilar” enquanto outro “Victória” com C
mesmo. Pedaços de memórias, de antigos fazeres, de técnicas manuais hoje
obsoletas ou esquecidas.
O que seria
do homem civilizado sem livros raros guardados em bibliotecas secretas, sem cartas
de viajantes destemidos, colchas finamente bordadas para casamentos históricos,
taças de cristal usadas por príncipes apaixonados e herbários de religiosas
abandonadas por suas famílias?
Hoje, peças fabricadas
em série, sem alma, são compradas em centros comerciais para adornar
consultórios médicos e saguão de hotéis.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde, sábado 27 de dezembro 2025

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