Por muito
que procure na minha memória, não sou capaz de dizer se foi durante alguma
visita ao Prado ou simplesmente em reprodução numa revista de arte. De qualquer
forma, a primeira visão da família real de Carlos IV retratada em 1800 por
Francisco Goya foi um choque. Como o monarca deixara esta obra ser exposta? Notei
então que, além da feiura decadente deste ramo dos Bourbons, os mais velhos
tinham algo em comum. Todos de boca fechada, com os lábios bem apertados. Indicando
falta de dentes.
A partir
desta observação comecei a reparar que a história dos retratos não é mais senão
uma imensa sucessão de sorrisos enigmáticos que, na realidade, escondem bocas
defeituosas, e que os leques foram inventados mais para esconder as carências dentárias
que para lutar contra o calor.
Referência
incontornável, a Gioconda, garbosa donzela, pode ser considerada uma obra
minimalista. No fundo, uma paisagem imaginária do norte da Itália cortada pelas
curvas de um caminho e de uma ponte sem qualquer sinal de vida.
A modelo, idade
indefinida, uns vinte e poucos anos talvez, não tem nenhuma joia, a roupa é
simples e a pose natural. Por que este misterioso sorriso? É provável que, como
a imensa maioria do povo, alguns de seus dentes já estivessem estragados.
Salvador Dalí pinta Gala, esposa e musa, de boca fechada. As mulatas de Di
Cavalcanti tão pouco ousam rir e até falta a boca em vários moleques, garotões
e adolescentes de Portinari.
Ao longo da
história, os relatos escritos detalhando personagens famosos não raramente
descrevem desastres bocais. O magnífico, soberbo Rei-Sol francês, Luiz XIV,
tinha um hálito terrível e todos os dentes estragados. O genial autor da
Comédia Humana, Honoré de Balzac (o aristocrático “de” sendo pura fantasia) era
simplesmente repulsivo quando abria a boca. O que não o impediu de conquistar
mulheres belas, ricas e de alta linhagem, provando que problemas dentários eram
corriqueiros.
Meu bisavô
era dentista em Paris no fim do século XIX. Pelo que se sabe na família, era um
professional de excelente reputação e muito bom nível de vida. Prova o
consultório no recém-aberto Boulevard des Capucines. Como ser mais que um
simples tiradentes numa época que desconhecia a penicilina, os anestésicos e a
eletricidade mal servia para iluminar as principais vias da capital? Mas se a
foto evolui, continua porem sem mostrar os dentes e a conquista da lua inventa
novos materiais que serão usados para cáries e implantes.
Finalmente a pintura,
a fotografia e a odontologia resolveram caminhar juntos permitindo, num alegre
pas-de-trois, o Andy Warhol retratar a esplêndida risada dentuda de Marilyn
Monroe.
Os
retratados podem rir à vontade. Alívio!
Dimitri Ganzelevitch
Jornal A Tarde
Sábado 5/10/2019
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