Prisões do futuro chegam a Portugal: mais humanas, confortáveis e silenciosas
As prisões do futuro são comparadas a hotéis: as celas têm janelas largas e luz natural, os reclusos vivem em pequenas comunidades e há menos barulho. A primeira em Portugal será no Montijo.
Não fosse o muro alto e espesso em redor, aquele edifício podia ser qualquer coisa. Halden é, no entanto, uma das prisões de alta segurança da Noruega. E é, ao mesmo tempo, o sítio do mundo que, provavelmente, muitos escolheriam para estar presos. Lá não se ouvem barulhos estridentes de portas a abrir e a fechar. Ferro e alumínio são substituídos por madeira e cortiça, para abafar o som. O vidro deixa entrar o sol e reconhecer a passagem das horas e dos dias. Lá dentro existe um ginásio, uma biblioteca e uma sala para compor música. As celas não parecem celas. Têm televisão e casa de banho com chuveiro.
Construída em 2010 no sul da Noruega, junto da fronteira com a Suécia, Halden herdou o nome da cidade que a alberga e arrecadou o prémio Arnstein Arneberg de arquitetura. Mas Halden é conhecida sobretudo por ser a prisão mais humanizada do mundo. Há mesmo quem a compare a um hotel — de mais de duas estrelas. E não há ninguém que a compare ao que se passa em Portugal.
Será assim, pelo menos, até à construção das duas novas prisões portuguesas, anunciada pelo Expresso. Montijo e Ponta Delgada têm planos arquitetónicos para ver nascer as primeiras prisões de “estilo nórdico” construídas no país, sob a alçada do arquiteto Jorge Mealha. Com o design e a arquitetura procura-se melhorar a qualidade de vida dos reclusos, reduzindo o stress e a agressividade. Nestas cadeias, as celas, quase todas individuais, passarão a ter cerca de dez metros quadrados e vão chamar-se “quartos”. Haverá um investimento nos espaços verdes e as únicas grades serão as das janelas. Pretende-se que, mais do que castigar, a cadeia sirva para reabilitar.
A pena deve ser apenas a privação da liberdade — e não as más condições da prisão
“Terá uma prisão de se parecer com uma prisão?”. A interrogação surge numa nova teoria social sobre como as prisões devem ser desenhadas e arquitetadas. Surge, também, na introdução de um livro — que é uma espécie de manual de instruções resultante de uma coletânea de estudos e opiniões reunida por Richard Wener e Elizabeth Chesla — publicado em maio de 2018 pelo Comité da Cruz Vermelha para explicar esta teoria: “Quando a detenção é necessária, o ambiente não deve acrescentar sofrimento à dor inerente da privação de liberdade”. Parafraseando, o fim da liberdade deve ser a pena em si mesma — e não as condições em que se está detido.
A arquiteta Beatriz Ferreira nunca tinha esboçado a ideia de como a arte podia influenciar o bem-estar dos reclusos e ajudar na reintegração após a pena, até ter sido obrigada a pensar num tema para tese de mestrado. Hoje tem delineado um plano de ação para “uma reclusão melhor” nas prisões portuguesas, mesmo sem as reconstruir de raiz. A inspiração de um novo modelo serve-se fria, preparada nos países nórdicos. “As principais diferenças têm a ver com o modo de vida; isto, debruçando-nos sobre a arquitetura, é o espaço onde os presos passam o dia”.
O que os nórdicos tentam fazer é ter pequenos núcleos — umas pequenas casinhas —, onde vivem, por exemplo, 12 reclusos e onde passam a maior parte do dia. É lá que cozinham e trabalham, “contactando sempre com as mesmas pessoas, o que faz com que se sintam em comunidade e não percam tanto a noção de família”, explica a especialista, deixando à vista as brechas de uma reinserção social cega. “Cometeram um crime, é bom que estejam lá. O problema é que eles vão sair da prisão e convém que saiam melhor do que entraram.”
Também as novas prisões portuguesas estão desenhadas assim. Haverá núcleos habitacionais para “famílias” de reclusos, com espaços comuns, materiais de construção que deixam passar a luz natural e até bares geridos por reclusos, para os incentivar a trabalhar. A primeira — construída em três anos, segundo as previsões, e com um custo estimado de 70 milhões de euros — será a do Montijo. Vai substituir o Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) e terá uma capacidade para receber entre 640 e 769 reclusos. A de Ponta Delgada tem um custo estimado de 50 milhões de euros e poderá receber até 472 reclusos.
"Imagine que há um espaço de espetáculos desenhado para 100 pessoas, mas põem-se lá 200. Ninguém vê o espetáculo, ninguém percebe nada, começa-se à cotovelada... Agora imagine isso dentro de uma prisão."
A 26 de março de 2014, João começou a percorrer, pela primeira vez, os corredores do estabelecimento prisional de Évora, depois da sentença do caso em que foram as pistas a seguir o inspetor. Os crimes de corrupção passiva e de violação de segredo de funcionário conduziram o ex-agente da Polícia Judiciária a uma pena de cinco anos e meio de prisão e valeram-lhe uma experiência que destoa da teoria expressa nas 361 páginas de papel escritas por Beatriz. “Somos latinos, judaico-cristãos e vemos com muita dificuldade as pessoas que cometeram um crime não terem um castigo sofrido”, diz o antigo recluso.
Formado em Psicologia, está agora a escrever uma tese de doutoramento na Universidade de Estremadura, Espanha, baseada num estudo demográfico das prisões portuguesas. “Ainda não somos maduros o suficiente para perceber que um indivíduo que está fechado 25 anos, independentemente do crime que cometeu, quando vier cá para fora, se não tiver um tratamento prisional devido, vem pior”, garante João de Sousa, uma vez que “já perdeu laços familiares, biologicamente também está muito mal, porque a saúde nas prisões é terrível, e psicologicamente é um indivíduo cerceado em tudo”.
Para João, as prisões existentes em Portugal falham em vários pontos. Desde logo, na falta de espaço. “Imagine que há um espaço de espetáculos desenhado para 100 pessoas, mas põem-se lá 200. Ninguém vê o espetáculo, ninguém percebe nada, começa-se à cotovelada… Agora imagine isso dentro de uma prisão”, explica.
Mas é, sobretudo, a falta de liberdade que leva a que se cometam ilegalidades nas prisões, dificilmente controladas pelo corpo de guardas prisionais, diz João de Sousa. Sobre os casos recentes de entrada ilícita de telemóveis nas cadeias, o ex-recluso admite que a solução deveria passar por “colocar mais telefones nas prisões” e permitir chamadas mais duradouras, já que “os presos têm apenas cinco minutos para falarem com a família e com os advogados. Nos países nórdicos as pessoas têm contacto constante com a família”, aponta.
Vítor Ilharco, da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR), corrobora e vai mais longe: “As cadeias são um negócio para muita gente. Os telemóveis são um negócio. Alguns guardas compram um telefone por 50 euros e vendem-no lá dentro por 400 euros. Os presos dão-lhes 100 euros para carregarem o telefone e eles carregam com 50. Depois, se o preso está muito tempo sem carregar, fazem uma rusga, apreendem o telemóvel e vendem-no a outro preso”.
“O problema não é falta de guardas, é excesso de cadeias”
Em Portugal, a pena máxima de prisão é de 25 anos. Na Noruega, de 21. Em nenhum dos países existe prisão perpétua, o que aguça a necessidade de investir no bem-estar e na reintegração dos reclusos. Em Portugal, há 12.867 reclusos. Na Noruega, que tem metade da população portuguesa, há 4.127. O reduzido número de presos permite à Noruega gastar, em média, 283,50 euros com cada recluso por dia — a contrastar com 41,90 euros gastos em Portugal. Os dados são fornecidos pelo último relatório do Conselho da Europa, que alerta que o nosso país está em 6o.º lugar na lista negra das nações com maior sobrelotação nas prisões, ainda que com um bom rácio de reclusos por guarda: dois.
MAIS:ASS
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