Arquitetura em suspenso, cidades em colapso: quando o direito à cidade cede ao mercado
Mais do que um problema económico, a crise na habitação é uma crise de modelo de gestão.
A habitação tornou-se o reflexo das desigualdades e da desorganização estrutural do território da Grande Lisboa. O recente relatório da Comissão Europeia sobre o mercado habitacional na União Europeia confirma o que já é visível no quotidiano da região de Lisboa e Vale do Tejo: é hoje o epicentro português de uma crise sistémica que põe em causa o direito à habitação e o equilíbrio social das cidades.
Desde o início do século, os preços das casas quase triplicaram na Europa, crescendo muito acima dos rendimentos médios da população. Em Portugal, o aumento foi ainda mais expressivo, com a região de Lisboa e Vale do Tejo a liderar esta escalada. Com surpresa, Lisboa é hoje a cidade europeia com a maior percentagem (116%) de rácio do salário aplicado à habitação pelos agregados familiares. Por cá, a forte pressão urbana, o turismo intensivo, a chegada de estrangeiros para viver e trabalhar, a concentração do investimento imobiliário e a escassez de habitação pública criaram um contexto em que o acesso à casa depende mais da capacidade financeira do que da necessidade real.
A crise de acesso à habitação é estrutural e será, seguramente, prolongada. Resulta, no essencial, de uma teia de fatores que se interligam entre si. Na base de tudo isto está, desde logo, a ausência de investimento público em habitação nas últimas décadas, a regulação urbanística fragmentada e desarticulada, com consequências diretas na morosidade dos licenciamentos, a falta de mão de obra (entre 80 a 100 mil trabalhadores), os custos de construção crescentes associados a uma fiscalidade excessiva que recompensa a especulação e a ausência de consistência no planeamento estratégico do investimento público.
Mais do que um problema económico, trata-se de uma crise de modelo de gestão. Transformou-se a habitação num ativo financeiro e o espaço urbano numa mercadoria. As cidades deixaram de ser lugares de vida para se tornarem campos de competição, onde o valor simbólico e social da arquitetura é substituído pelo valor comercial.
A resposta exige, mais uma vez, visão e desenvoltura política. É imperativo reformar os processos de licenciamento, tornando-os mais céleres e eficazes, sem pôr em risco as exigências de uma arquitetura de qualidade ou a capacidade de escrutínio técnico que garante o interesse público. Os tempos de resposta das entidades licenciadoras e das que emitem pareceres vinculativos são excessivamente longos e, tantas vezes, imprevisíveis e discricionários, provocando atrasos estruturais no processo de projeto e na construção. As demoras processuais resultam de múltiplos fatores, todos eles bem conhecidos dos arquitetos.
Começaria, desde logo, pelos regulamentos municipais de urbanização e edificação e pelos planos diretores municipais, regulamentos sobre os quais operam diariamente os arquitetos. É essencial que esses regulamentos sejam purgados de ambiguidades e de regras de integração urbanística desprovidas, muitas vezes, de qualquer base lógica, técnica ou científica. Acredito que muitos municípios já estão a desenvolver esse trabalho, certamente exigente, mas é precisamente aí que reside uma parte fundamental da solução para os problemas de transparência e para as demoras nos procedimentos urbanísticos. A indefinição e a falta de rigor desses regulamentos criam insegurança nos arquitetos e condicionam a autonomia e a capacidade de decisão dos técnicos das entidades licenciadoras. A este problema soma-se a escassez de recursos humanos qualificados, nomeadamente arquitetos, bem como a limitação tecnológica em muitos desses serviços.
Todos estes problemas entroncam noutro: o da comunicação entre as partes envolvidas num procedimento urbanístico. Um processo urbanístico não é, nem pode ser tratado, como um simples pedido de dístico de estacionamento. As plataformas digitais, não obstante as suas virtudes, tornaram mais difícil e opaca a relação entre os arquitetos e as câmaras municipais. O arquiteto, como principal interlocutor com as câmaras municipais e em virtude do papel preponderante que tem no desenvolvimento dos procedimentos urbanísticos, deve ter acesso prioritário aos serviços de urbanismo. Não pode, a título de exemplo, quando confrontado com a necessidade de uma reunião urgente, presencial ou telemática, ter de esperar um ou dois meses para que tal reunião aconteça. A apreciação camarária de um projeto não pode ser superior ao tempo de execução do próprio projeto. Não se trata de demérito dos arquitetos que realizam essas apreciações, cuja competência reconheço e valorizo, mas sim do resultado de um sistema excessivamente complexo, que também os condiciona e arrasta.
A apreciação de um projeto de moradia unifamiliar, em média, demora mais de seis meses, o que é inconcebível para o arquiteto ou para o promotor. A capacidade de resposta das entidades de tutela, câmaras municipais ou outras, deve melhorar substancialmente e encontrar formas mais expeditas de resolver impasses, garantindo canais próprios para que os arquitetos, em matéria de urbanismo, possam agilizar os procedimentos em que estão envolvidos. O sistema ganharia previsibilidade e confiança. Ganhariam as entidades, os promotores, os arquitetos e, naturalmente, o interesse público ficaria melhor salvaguardado.
Enquanto tal não acontecer, continuaremos a ter um sistema que penaliza quem cumpre, desincentiva o investimento responsável e fragiliza a confiança dos cidadãos nas instituições públicas. Reformar este quadro exige uma abordagem integrada, que passe por reorientar a fiscalidade na área de projeto, penalizar o abandono e a retenção especulativa de imóveis e, sobretudo, reforçar o investimento em habitação pública, com ênfase na habitação cooperativa, em propriedade privada e coletiva, capaz de conjugar o interesse público com a iniciativa cidadã.
A arquitetura não é um luxo, nem pode ser um acessório do mercado. A arquitetura e o urbanismo são os únicos instrumentos de política pública capazes de restituir coesão, funcionalidade e dignidade às nossas cidades e ao território. A crise da habitação não pode ser considerada uma inevitabilidade. É o resultado de décadas de opções políticas e estratégicas que favoreceram a especulação em detrimento do planeamento e o lucro em detrimento do direito à cidade. O diagnóstico está feito, conhecemos a origem do problema e a terapêutica será um processo lento, que se espera bem planeado, controlado e que, de uma vez por todas, não transforme o interesse público num conjunto de intenções abstratas e inconsequentes. A reversão é possível, desde que fundada em escolhas determinadas e decisões diferentes, que devolvam à arquitetura o seu papel de mediação entre o cidadão e o território, sob pena de deixarmos de ter cidades para passarmos a ter apenas mercado.
Presidente da Ordem dos Arquitetos da Secção Regional de Lisboa e Vale do Tejo
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