sábado, 15 de dezembro de 2018

SAI PELA PORTA DA FRENTE

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Como é belo! Parece uma National Gallery tropical! Inocente, entrei como quem vai ao cinema. Seria prontamente aspirado por uma força misteriosa que me levaria por longo corredor desembocando em interminável rampa. Deslizei até um elevador metálico em direção ao centro da terra. A cada parada, a porta se abria sobre uma visão diferente: Uma mangueira, um imenso dormitório de automóveis, uma paisagem urbana coroada por uma igreja barroca.... Vieram mais corredores e rampas até eu chegar numa pequena sala onde homens, tão velhos quanto eu, jaziam envoltos em amplos veludos azuis. No meio da sala, o único adolescente se levantava cada vez que na televisão colorida aparecia o presidente vestido de general, com todas suas medalhas de eventual bravura.
Uma enfermeira, gorda e gentil, me pediu para sentar na cadeira de rodas. Outra, cujo rosto não pude ver, me levou por mais corredores até outra sala parecendo cenário da Inquisição. Alguém injetou no meu braço esquerdo um filtro para adormecer. Não sei por quantos anos dormi, sonhando em campos floridos e música de harpas. O despertar em quarto cinza e ar gelado seria difícil. Após vinte horas de jejum, meu corpo reclamava por um boi inteiro. Me foi servido algo parecido com uma sopa de retirante, morna, rala, em caixinha de plástico transparente com colher idem. Depressão chegando.... Será para isso que pago mensalmente um extorsivo plano de saúde? A cada instante um novo rosto adentrava a cela, sob pretextos variados, mas do banquete sonhado, nada! Até meu soro acabou sem que ninguém deste rosário de visitantes desse alguma solução: ou pendurando nova garrafa ou tirando os penduricalhos espetados na minha mão esquerda. Assim é que não vou dormir. Continuava a ciranda de visitas tão estranhas quanto inúteis. A fome me devorava as tripas. Resolvi descer até a lanchonete comprar algo para não desmaiar. Recusaram: não tinha autorização médica. Lembrei dos gulags, da ilha do Diabo na Guiana francesa, do deserto de Atacama...
Comecei então a planejar uma cinematográfica evasão.  Vesti sem demora minha roupa de cidadão livre e, deixando a televisão –imagem péssima – ligada, abri devagar a porta. Ninguém vigiando. Comecei a andar, andar, andar até a saída sem ser impedido por uniforme nenhum, e sai pela porta principal para me enfurnar num taxi cujo motorista, sem suspeitar da fuga, me levou a casa por poucos reais.
Infinita alegria ao abrir a geladeira, pegar dois ovos, colocar um pouco de azeite doce na frigideira e quebra-los que nem chefe três estrelas. Sal do Himalaia e merken chileno, duas fatias de pão integral... Enquanto isso, uma tempestade pairava acima do hospital.
Dimitri Ganzelevitch
publicado n´A Tarde
Sábado 15 de dezembro 2018




Um comentário:

  1. Lindo texto, parabéns, ilustríssimo cronista. Seria trágico, se não fosse real. Obrigado também pela oportunidade de ler neste espaço criativo sua crônica publicada no Jornal A Tarde. Lamentavelmente não mais recebo o Jornal A Tarde com suas crônicas, especificamente com suas crônicas, tudo o mais do Jornal A Tarde está mantido, desconfio que o entregador do Jornal A Tarde é seu fã incondicional e se apropria de minha possibilidade de leitura em papel. Resta-me a via virtual. Ainda vou descobrir o que está acontecendo... montarei um plano infalível para investigar o entregador de jornal durante a madrugada...

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