Eles chegaram, jovens, sadios, alegres nos seus uniformes bem
cortados. Filhos de irlandeses ou italianos – os negros eram mandados para
frentes mais bélicas – cabelo muito curto, falavam alto dando muita risada. Esparramados
nos seus veículos esquisitos chamados jeeps, botas no para-brisa ou fora do
carro, jogavam caramelos para as crianças nas ruas de Casablanca. As mães não
deixavam pegar porque podiam conter veneno. Os soldados ianques mastigavam
durante horas algo bizarro que não se devia engolir porque aquilo podia colar o
intestino e levar à morte. Nunca, até 1942, tínhamos ouvido falar em “chewing
gum”. Mas eram bem-vindos por serem a garantia de que as tropas nazistas não
invadiriam Marrocos.
Pouco antes do Natal, um grupo de amigos de minha mãe,
recém-separada, foi convidado a almoçar num quartel americano perto de Meknés.
Toda a comida vinha por avião dos EUA. Naqueles tempos de penosa restrição
alimentar, ver chegar à longa mesa do refeitório perus inteiros deixou sem voz
os convidados.
Depois da lauda refeição, fomos até as ruínas romanas de
Volubilis. Mas eu tinha só seis anos e aquilo não podia me seduzir. Reclamava
do longo passeio sem graça debaixo do sol forte. A certa altura, cutucando o
terreno arenoso com a ponta de meu sapato, avistei e peguei algo redondo e escuro.
Minha mãe me disse que era uma moeda romana, uma peça de museu!
Foi assim que a museologia entrou na minha vida. Regressando
à casa, levei a moeda até uma pequena sala vazia e, recolhendo alguns objetos
velhos e quebrados, cacos de espelho, brinquedos, arrumei tudo no chão à volta
do quarto e fui falar para minha mãe que tinha feito um museu. Não demorou em
vir com os amigos conhecer este importante novo marco da memória romano/magrebina.
Só que, na hora de entrarem, exigi pagamento. Todos, com muita risada, deram
algum trocado.
Cresci, fui morar em várias capitais de três continentes. A
moeda sempre me acompanhou e hoje está numa vitrina da biblioteca, junto a um
monte de pequenos objetos com e sem valor.
Abro minha casa, declarada casa-museu pelo Ministério da Cultura,
a quem tem curiosidade em conhecê-la. Certo dia, apareceram dois jovens
americanos estilo “play-boy surfista”. Começou a visita do acervo. De repente
um deles me pede para examinar a moeda. “Que interessante! É do imperador Marcus
Aurélio, que viveu no segundo século depois do Cristo. Era um imperador de
grande cultura. Escreveu até um livro...”. Olhei para ele com desmedida
surpresa. Este garoto de bermuda, havaianas e protetor solar branco no nariz, este
monte de músculos, era um especialista em numismática romana, uma enciclopédia
ambulante, uma fera.
Queira ou não, você sempre terá algum preconceito.
Dimitri Ganzelevitch
Jornal A Tarde
Sábado 11/07/20
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