sexta-feira, 24 de julho de 2020

CARPE DIEM



Entrei no meu octogésimo quinto ano de vida e quinto mês de isolamento horizontal, vertical e diagonal.  Ambos bastante chatos, já que gosto de bater perna por aí, descendo alegremente as ladeiras da vida, evitando subi-las. 
Em tempo de umidade, as articulações reclamam.


Vamos ser objetivos, apesar de considerar que objetividade não existe, nem nos números. Meu passado inteirinho está guardado em dois baús. Ao abrir o primeiro, vejo um monte de coisas desagradáveis. Nasci na véspera da guerra civil espanhola, passeei minha infância pela Segunda Guerra Mundial e matracaram minha cabeça de adolescente com informações deprimentes sobre a guerra da Indochina. Sem me pedir licença me envolveram na guerra da Argélia. Saindo dos protestos contra a guerra do Vietnam, cai nas angústias da Aids e agora tento sobreviver ao coronavírus apesar do psicopata de Brasília. É mole?
Melhor fechar rápido esta caixa de Pandora e abrir o outro baú. Agora, sim!  Depois de uma faísca azulada, o sol aparece, sorridente, nuvens brincam e alguém emoldurou a tela de meu computador com uma grinalda de lembranças perfumadas.

Posso falar a verdade? Tive uma sorte braba. Vivi a vida que escolhi, com um mínimo de imposições externas. Sempre livre, aceitando o ônus normal da liberdade. Sobrevivi às ditaduras de Franco, Salazar e Geisel. Com a sorte de estar no lugar certo no momento certo, conheci bem ou fui simplesmente apresentado a algumas figuras que fizeram a história e a cultura do século XX. Comi coisas deliciosas em grandes restaurantes e em botecos de beira de estrada. Bebi vinhos raros e tequilas e cachaças e runs para lá de especiais.

Vivo rodeado de livros e objetos que marcam uma caminhada prazerosa. Então, pelos séculos que me restam, que cada manhã seja uma festa! Nada de começar o dia como se fosse o último. Coisa mais sinistra! Muito pelo contrário: será sempre o primeiro dia de minha vida. É assim que quero enfrentar a rotina. Escolher uma camisa diferente sem esquecer uma leve água de cheiro, tomar um bom suco olhando para a baía após ter dado de comer e beber aos pássaros. Descer até a porta da rua para pegar o jornal, brincar com minha velha e querida cadela – para ela, a vida foi sempre um carnaval – molhar as samambaias, continuar a leitura de um bom autor. 

 Pegar o telefone e conversar com bons amigos, que é a família que a gente escolheu, refazer o universo – vai dar impeachment? -  elaborar cem projetos – vamos a Zanzibar ou a Goa primeiro? - .... Sonhar. Ainda. Sempre.

O colar de miçangas coloridas e irregulares está chegando a seu fecho. Não tem grande valor de mercado, é verdade. Sotheby´s ou Christie´s nem olhariam para ele.
Mas cada um sabe de seus tesouros.

Foto: Paulo Vaz

Um comentário:

  1. Eu já estar contente se pudesse dar um pulinho até o Clube dos Goeses ali na Rua da Glóia em Lisboa para almoçar.

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