Entrei no
meu octogésimo quinto ano de vida e quinto mês de isolamento horizontal,
vertical e diagonal. Ambos bastante
chatos, já que gosto de bater perna por aí, descendo alegremente as ladeiras da
vida, evitando subi-las.
Em tempo de umidade, as articulações reclamam.
Em tempo de umidade, as articulações reclamam.
Vamos ser objetivos, apesar de considerar que objetividade
não existe, nem nos números. Meu passado inteirinho está guardado em dois baús.
Ao abrir o primeiro, vejo um monte de coisas desagradáveis. Nasci na véspera da
guerra civil espanhola, passeei minha infância pela Segunda Guerra Mundial e
matracaram minha cabeça de adolescente com informações deprimentes sobre a
guerra da Indochina. Sem me pedir licença me envolveram na guerra da Argélia.
Saindo dos protestos contra a guerra do Vietnam, cai nas angústias da Aids e agora
tento sobreviver ao coronavírus apesar do psicopata de Brasília. É mole?
Melhor
fechar rápido esta caixa de Pandora e abrir o outro baú. Agora, sim! Depois de uma faísca azulada, o sol aparece,
sorridente, nuvens brincam e alguém emoldurou a tela de meu computador com uma
grinalda de lembranças perfumadas.
Posso falar
a verdade? Tive uma sorte braba. Vivi a vida que escolhi, com um mínimo de
imposições externas. Sempre livre, aceitando o ônus normal da liberdade.
Sobrevivi às ditaduras de Franco, Salazar e Geisel. Com a sorte de estar no
lugar certo no momento certo, conheci bem ou fui simplesmente apresentado a
algumas figuras que fizeram a história e a cultura do século XX. Comi coisas
deliciosas em grandes restaurantes e em botecos de beira de estrada. Bebi
vinhos raros e tequilas e cachaças e runs para lá de especiais.
Vivo rodeado
de livros e objetos que marcam uma caminhada prazerosa. Então, pelos séculos
que me restam, que cada manhã seja uma festa! Nada de começar o dia como se
fosse o último. Coisa mais sinistra! Muito pelo contrário: será sempre o
primeiro dia de minha vida. É assim que quero enfrentar a rotina. Escolher uma
camisa diferente sem esquecer uma leve água de cheiro, tomar um bom suco
olhando para a baía após ter dado de comer e beber aos pássaros. Descer até a
porta da rua para pegar o jornal, brincar com minha velha e querida cadela –
para ela, a vida foi sempre um carnaval – molhar as samambaias, continuar a leitura
de um bom autor.
Pegar o telefone e
conversar com bons amigos, que é a família que a gente escolheu, refazer o
universo – vai dar impeachment? - elaborar cem projetos – vamos a Zanzibar ou a
Goa primeiro? - .... Sonhar. Ainda. Sempre.
O colar de
miçangas coloridas e irregulares está chegando a seu fecho. Não tem grande
valor de mercado, é verdade. Sotheby´s ou Christie´s nem olhariam para ele.
Mas cada um
sabe de seus tesouros.
Foto: Paulo Vaz
Eu já estar contente se pudesse dar um pulinho até o Clube dos Goeses ali na Rua da Glóia em Lisboa para almoçar.
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