domingo, 28 de janeiro de 2018

O PIANISTA E A VIZINHA

Com apenas 11 anos é um prodígio do piano mas tem a polícia à perna por causa do barulho

Thiago Tortaro já ganhou seis prémios internacionais de piano. Mas há quem, em Rio de Mouro, não goste da sua música. Uma vizinha já chamou a polícia e a mãe pode ter que pagar €4 mil de multa


Á porta da sua casa, em Rio de Mouro, Thiago Tortaro, 11 anos, dá uns toques na bola com um vizinho e o repórter de imagem da VISÃO. Thiago espera o seu momento de chutar, ri-se, salta, vê a bola bater numa parede. Tudo banal. Uma criança a jogar à bola.
Fora do vulgar é o seu imenso talento para tocar piano. Ainda não tinha três anos e já se sentava no banco, de fraldas, de frente para as teclas. A influência da mãe, que toca piano e acordeão, despertou-o desde cedo para a magia da música. E não só. Aprendeu a ler, sozinho, aos 4 anos; na escola, passou do 1º para o 3º ano; é aluno de cincos a tudo. “O que gosto mais é de matemática, ciências e físico-química”, diz, enquanto come uma bolacha na cozinha e olha para Valentim, o colorido e irrequieto pássaro que vagueia por todo o lado.
Mas a sua maior paixão é mesmo a música. Clássica. Está no 7º ano do ensino articulado – às disciplinas comuns, junta as aulas no Instituto de Música Vitorino Matono, em Lisboa. “É um prodígio”, garante Fernando Sêrro, professor de música há mais de 30 anos e seu padrinho artístico. Thiago já ganhou seis primeiros prémios internacionais de piano (o último em maio, em Itália) em representação de Portugal.
Nem toda a gente partilha deste entusiasmo: sucessivas queixas da vizinha de cima têm levado a PSP a bater-lhe à porta mais vezes do que as que a mãe, Maria Carvalho, consegue contar. “Houve alguns guardas simpáticos que até disseram que os vizinhos deviam pagar para o ouvir ou, então, que eu nem devia pagar condomínio”, graceja. Outros, nem por isso. “Um polícia mandou-me ir tocar para uma garagem”, lembra o pequeno músico. A mãe conta que as visitas dos agentes têm deixado a criança ansiosa. “Vira-se para mim e pergunta-me 'Nunca mais posso tocar? Porquê?'”
A Lei do Ruído, que é a aplicável neste caso, é ambígua. Como é do conhecimento geral, entre as 23 horas e as 7 da manhã, as autoridades podem mandar “cessar imediatamente a incomodidade” para os vizinhos. Mas isso não significa que haja tolerância para o barulho diurno: entre as 7 e as 23 horas, a polícia pode ser chamada e dar um prazo “para fazer cessar a incomodidade”.
E foi sempre durante o dia que a polícia apareceu, “às duas, três ou quatro da tarde”, segundo a mãe de Thiago. A última vez foi a 10 de outubro e, como eram 18h45 (há um acordo entre os condóminos que lhe permite tocar até às 20 horas, mas que não tem a anuência da vizinha de cima), Maria Carvalho disse ao agente que o filho iria continuar ao piano porque precisava de praticar.
A coima por desobediência chegou uns dias mais tarde. Maria arrisca-se a pagar entre €400 e €4 000 por não ter cumprido a ordem de cessar o “ruído que se ouvia de forma incomodativa e perturbadora”, refere o auto de contra-ordenação da PSP.

QUAL RUÍDO, QUAL QUÊ!

Fernando Sêrro levanta as sobrancelhas quando lhe dizem essa palavra. “A música não é ruído.” Aquilo que ele “emite são sons musicais afinados, que se caracterizam por serem harmónicos, por estarem em harmonia e em melodia uns com os outros.”
Perante a situação da coima, Sêrro escreveu, em novembro, ao Presidente da República, ao Provedor de Justiça, à Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGESTE) e a todos os grupos parlamentares da Assembleia da República. A provedoria respondeu que “não foram encontrados indícios da prática de qualquer ato ilegal” por parte da polícia e que não podem “resolver o conflito entre condóminos […] em todas as dimensões do problema”. Da DGESTE recebeu o conselho “para aguardar a resposta das individualidades” a quem foram enviados os emails e a menção de que “não obstante os constrangimentos […] qualquer cidadão está obrigado ao cumprimento da estabelecido no Regulamento do Ruído Ambiental do Município”. A terceira e última resposta veio da parte de Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, que disse ir “ponderar a possibilidade de iniciativa no quadro parlamentar” para responder às exigências de aprendizagem que um instrumento implica, nomeadamente “um número elevado de horas de prática”. Dos restantes partidos e do Palácio de Belém não chegou resposta ao professor.
Se o número de horas de ensaio é elevado, sendo que nem sempre é possível fazê-lo na escola de música, será necessário arranjar-se um meio-termo. “Não quero fazer disto um conflito entre vizinhos, mas sim que o meu filho possa estudar música. Concordo que todos têm direito ao seu descanso, mas digam-me apenas, afinal, a que horas é que ele pode tocar”, pede Maria Carvalho. “Os alunos estão em formação e a lei não os defende.”
Célia Nóbrega, jurista dos Julgados de Paz, especialista em quezílias entre vizinhos, diz que “há sempre uma questão subjetiva” por parte de quem faz queixa. Um caso de partilhas, exemplifica, seria a coisa mais simples de se resolver, já que bastaria usar as regras matemáticas, mas “geram-se os maiores conflitos devido a sentimentos ou raivas”.
No caso de Thiago, a mãe não sabe o que está por trás de tanta chamada da polícia. Mas o seu caso não é único: no Conservatório de Música de Sintra, a mãe de um aluno também se queixou de que o filho estava com dificuldades em estudar piano em casa devido a problemas com um vizinho.
O pequeno prodígio musical, esse, apenas quer estudar música. Ser pianista profissional é a sua ambição. E os pais querem ajudá-lo a concretizar o sonho, seja de que maneira for. Ao ponto de construirem uma espécie de caixa de insonorização na sala de estar para Thiago tocar os seus preferidos: Chopin, Mozart, Liszt, Bach. Os cerca de cinco mil euros que a obra custa não garantem total ausência de som, mas “deve ajudar”, e esperam que a lei mude, para que os alunos do ensino artístico possam estudar sem medo.
Até porque Thiago, agora, além de piano, também toca violino.
(Artigo publicado na VISÃO 1293 de 14 de dezembro)

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