Viagem à Etiópia e o pequeno susto
Nunca fui tão longe, em todos os aspectos, como nessa minha viagem à Etiópia. Senti-me entrando em um mundo a parte, com códigos em muito semelhantes, mas em tudo diferente. Nem em Istambul (Turquia), com seus bairros inteiramente islâmicos, mulheres de burca, me senti indo tão distante.
Trouxe algumas lembranças dessa viagem à Etiópia. Uma cruz de prata de Axum, outra de Lalibela, alguns brinquedos de madeira para o meu filho, peças em couro, dois cachecóis de puro algodão, muitas lembranças de momentos, encontros... ficou em mim o jeito do etíope de andar, de falar, de se cumprimentar...
Há um pequeno gesto que me marcou sobremaneira. É muito comum, na Etiópia, em uma conversa, que os interlocutores demonstrem tomar pequenos sustos durante o diálogo. No começo, achava que, de alguma forma, as pessoas de fato se assustavam com o que eu falava. Mas, fui percebendo se tratar de algo normal, muito sutil e bem feito. Esse gesto parece dizer “estou prestando muita atenção em você”. É um momento atencioso, sim. Numa discussão, “o pequeno susto” tende a surgir da parte que busca acalmar o calor da hora. Aos poucos, tentei incorporar o “pequeno susto” no meu cotidiano, durante a viagem. Passou a ser algo normal, não chamava a atenção quando em conversa com os locais. Mas, já de volta, as pessoas achavam que algo se passava comigo. Senti-me ridículo e logo parei.
Em Busca do Preste João
A Etiópia adotou a religião cristã, oficialmente, no século IV quando era conhecida como Reino da Abissínia pelos antigos. Subordinado à Igreja Católica Egípcia, o cristianismo etíope em nada se assemelha ao nosso, dos dias atuais. Tem um quê de “elo perdido” que nos reconecta com o mundo antigo. O turismo religioso vem crescendo, sobretudo em tempos da Páscoa, na cidade sagrada de Lalibela. As festas sagradas em janeiro são ainda mais numerosas! Fato que desde a Idade Média, aos olhos do ocidente, a Etiópia ganhou ares míticos de resistência religiosa.
Em 1497, Vasco da Gama saiu de Portugal munido da esperança de encontrar uma rota para as terras do Preste João, como era chamado o chefe da igreja cristã etíope pelos ocidentais. O militar português estava a bordo da nau capitânia São Gabriel, uma fortaleza flutuante, com vinte canhões e uma tripulação bem armada. Pelo caminho, os portugueses subjugaram dezenas de populações e cidades, mas não chegaram às terras altas etíopes. Àquela época, tinha se transformando em obsessão entrar em contato com o único reino cristão africano, que teimava em resistir aos ataques mulçumanos que já haviam consumido boa parte da cristandade do continente. A Dinastia Etíope tem suas raízes no século X A.C. Fez frente à onda mulçumana que tomou, inclusive, o Egito, berço do cristianismo copta, da qual a Etiópia se alinha até hoje.
A Etiópia está quase toda localizada na altitude, entre montanhas, proteção natural que sempre impediu os avanços dos invasores. E foi assim durante quase todo o tempo em sua história.
Quando da Conferência de Berlim (1884), em que o continente africano foi dividido entre as potencias européias, a Etiópia manteve a sua autonomia. Certo que sofreu com uma breve ocupação italiana, durante a segunda guerra mundial, invasão que deixou marcas visíveis até os dias de hoje. Mas, em nada comparado ao tempo e vigor das ocupações das demais nações africanas.
O povo etíope foi particularmente marcado pelo longo reinado de Haile Selassie, durante o século vinte. Selassie foi regente entre 1916 e 1930 e tornou-se imperador até 1974, quando foi deposto. Sobre ele, ergue-se um manto mítico que levou a criação da seita rastafári. Fiquei um impressionado ao ter contato com documentos da década de 20, no Museu Nacional da Etiópia, na capital Addis Abeba, que Selassie defendeu a escravidão com unhas e dentes. Na Etiópia, algum tipo de escravidão oficial figurou no país até cerca de 1942.
Hoje em dia, a Etiópia é um país pobre. Sua pobreza é famosa desde os anos 70. Mas, não é o país mais pobre da África. Aliás, os etíopes vêm experimentando um forte crescimento. Em media, na última década, o PIB etíope cresceu 10%.
Addis Abeba: uma nova flor
Adis Abeba significa “nova flor”, em amárico. A cidade foi fundada em 1886, portanto, essencialmente nova em um pais tão antigo. Situa-se no centro da Etiópia a uma altitude aproximada de 2.440 metros. Meus amigos e eu chegamos em Addis Abeba em meados de abril, momento com temperatura muito agradável, embora muito seco como deve ser durante quase todo o ano. Pela combinação altitude com secura, diariamente, eu sentia um leve mal estar após o almoço.
Addis é um dos grande centros comerciais da África. Uma cidade multicultural com quase uma centena de nacionalidades e línguas diferentes. O traço étnico é marcante e ainda definidor na Etiópia! Nas ruas, pessoas comuns com trajes ocidentais (camisa, jeans, etc...), mas é muito comum vermos panos e cores características de determinadas etnias.
Em geral, a estrutura óssea do etíope do altiplano é alongada e fina. Há uma proporção desigual entre a testa (maior) e o queixo (menor), combinação que gera homens e mulheres extremamente bonitos! Eu não conhecia a fama da mulher etíope, mas posso atestar que se trata da mais pura verdade.
O aeroporto da cidade está em permanente construção, mas já há uma parte moderna em funcionamento. A Ethiopian Airlines pertence ao governo e se consolidou como uma das companhias aéreas mais ativas do continente, construindo uma rota pan-africana de longo alcance. É uma espécie de “aeroporto de Frankfurt” da África, recebendo, para distribuição de passageiros, voos não apenas continentais, mas também da Europa e EUA.
Na nossa chegada a Addis Abeba, ficamos horas na fila de imigração. Um pequeno caos, graças a imensa quantidade de gente que chegava de toda a África (sobretudo), mas também pela precariedade do sistema de entrada no país. Não me aborreci, pois ficava deslumbrado observando tantos trajes e perfis distintos, vibrantes! Gente de toda parte da África aterrissando em Addis Abeba.
Mas, passamos horas na fila para entender que uma mínima parte do sistema é informatizado. Funcionários ficavam agitando passaportes de passageiros extenuados, alguns completamente já ensandecidos diante da demora.
Cerca de duas horas e meia após o pouso, estávamos em uma van enviada pelo Eliana Hotel, um dos principais da cidade. Um hotel simples, confortável, de arquitetura contemporânea, com materiais comuns que podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo. Um hotel de muitos andares, que se impõe na paisagem da cidade. Dois andares acima do meu, uma boate onde a juventude classe média de Addis Abeba costuma freqüentar nos finais de semana.
Nós chegamos à noite e logo percebemos que a cidade praticamente não tem postes de luz. Do aeroporto ao hotel foram cerca de 20 minutos em uma incrível escuridão. Nos dias seguintes, andaríamos por ruas completamente escuras, sem que isso tenha se configurado um problema. De uma maneira geral, Addis Abeba é uma cidade segura. Mas, é incrível dizer isso: me parece que o aeroporto de Paris possui mais luz artificial que em toda Addis Abeba.
O quarto reservado para mim ficava no 12º andar do hotel. Do alto do hotel, eu tive acesso a uma vista em nada luxuriosa, mas fascinante aos meus olhos de viajante em meu primeiro dia. O hotel fica na avenida Churchill, uma das mais antigas e principais da cidade. De um lado, eu via um prédio em construção tão grande quanto o do hotel em que eu estava. À minha frente, outro prédio em construção. Curioso que ambos pareciam abandonados, não exatamente em obras. Eu iria ver mais outros tantos da mesma forma pela cidade. Questionei seguidas vezes se estariam, de fato, abandonados. A resposta era que “os chineses trabalham assim”.
O “boom” econômico etíope está ligado à China. Os chineses estão levando muitos investimentos à Etiópia. O pais se tornou uma área de domínio amplo “made in China”. Os acordos, normalmente, envolvem concessões a perder de vista. O imenso aeroporto, por exemplo, será explorado por mais de cem anos. O relacionamento com os chineses não é do mais simples, dizem os moradores de Addis. Comentam que os chineses são arrogantes e que jamais confiam o suficiente na capacidade dos etíopes. O contato cultural é dos mais complicados, dificilmente há uma troca. O hotel estava repleto de “chinas”.
Addis Abeba é uma cidade precária. Sem infra-estrutura básica, de difícil mobilidade e clara situação de pobreza de sua população. Há um mercado de rua famoso, um dos maiores e mais tumultuados da África: o Mercatto. De fato, um caos. Ali, junto com os meus amigos de viagem, fomos enganados e quase surrupiados. O Mercatto não possui o charme de outros mercados de rua, como em Marraquexe, por exemplo. Mas, encontra-se de tudo e entendi que é um centro de distribuição geral, na África. Muitas pessoas dos países vizinhos para lá vão comprar e vender. Via de regra, um comércio do dia-a-dia, mas também com espaço para bons produtos (especiarias, artesanato, jóias). Mas, de fato, um lugar muito difícil de andar e apreciar.
Pelas ruas de Addis Abeba, é muito comum encontrar pessoas tentando se virar de todas as formas possíveis. O lavar tênis e sapatos nas calçadas se transforma em uma profissão levada a sério, onde o lavador precisa demonstrar grande entusiasmo e esmero. Pede-se alguns poucos Birrs (um dólar equivale a um Birr) com balanças para o transeunte se pesar. Há muitos pedintes, sobretudo crianças. Às vezes, em situação desoladora.
Encontra-se de tudo nos restaurantes e mercados da cidade. Frutas e verduras diversas. Nada que se compare à fartura brasileira, mas também nada perto da escassez cubana, por exemplo. Encontramos algumas lojas de suco muito boas. Curioso que, pelo costume local, eles oferecem copos de suco com mais de uma fruta, mas eles não as misturam. Num suco de mamão e abacate, por exemplo, a primeira camada é inteiramente de abacate e a segunda inteiramente de mamão. Isso provoca um efeito visual interessante!
Estar em Addis Abeba como turista significa uma intensa negociação, quase o dia inteiro. Em poucos lugares há um preço fixo registrado. Quando parávamos os táxis, em sua imensa maioria sem taxímetros, perguntávamos o valor que o motorista cobraria para nos levar. Normalmente, fechávamos por menos da metade do solicitado. Às vezes, um terço.
Beber um excelente café, em qualquer canto da cidade, até mesmo em uma barraquinha na rua, talvez seja a mais importante coisa a se fazer em Addis Abeba! Em qualquer canto, há um ritual a ser observado. Acende-se o incenso, torra-se, mói-se e coloca-se o café em um bule rústico e, nesse meio tempo, o aroma já tomou o lugar. Para a minha surpresa, logo no meu primeiro café, serviram-me com uma folhinha de arruda e o gosto ficou excelente! O ideal é que o visitante tome ao menos três xícaras de café, seguidas. Tomar café se transforma numa possibilidade de encontro e farta conversa.
Se o café etíope, do qual o povo possui imensa satisfação, jamais nos decepcionou, o Museu Nacional, por outro lado, se revelou uma imensa frustração... vale lembrar que estamos em uma das áreas mais antigas habitadas pelo homem. Eu tinha imensa curiosidade para ver Lucy, Fóssil de cerca de 3,2 milhões de anos. Mas, Lucy está exposta de uma forma constrangedora, sem nenhum cuidado. A precariedade do museu, que atrai a atenção de visitantes do mundo inteiro, é chocante.
Não posso deixar de mencionar o meu espanto ao perceber, andando de carro, uma imensa zona de prostituição na zona central da cidade. São centenas de casas iluminadas com cores diversas, lâmpadas que sugerem um ambiente alegre e de pura diversão, mas que concentra meninas e, muitas vezes, crianças de toda África que buscam fugir da miséria. Clientes que pagam valores absurdamente baratos para desfrutar da companhia de milhares de jovens em situação precária. A prostituição é legal na Etiópia, um dos raros países africanos a proceder dessa forma.
Cabeça e ombros independentes
A cena musical em Addis Abeba é rica e vem passando por transformações nos últimos anos. O jazz etíope chama a atenção. Fomos à principal casa de jazz da cidade (o lendário Ghion Hotel, com seus imensos jardins!) e pudemos conferir excelentes músicos e excepcionais cantores. Confesso, porém, que nada do que presenciamos saiu muito do script, do normalmente estabelecido. Gostaria de ter conferido algo com maior originalidade, uma real mistura da musica local com o jazz norte-americano.
A música local, do altiplano etíope, foi criada pelo por Santo Yared, que viveu entre 505 e 571. Yared, que hoje é considerado um santo pela Igreja Etíope, criou um sistema de notação musical denominada Zema, utilizado fartamente até hoje pelos ortodoxos. Utiliza-se do Cordofone (espécie de violão com dois braços), Aerofone (tipo de trompete) e Membranofone (tambor do altiplano etíope).
Nós fomos ao Yod Abyssínia Cultural Restaurant, próximo ao aeroporto, no bairro de Bole. Um local excepcional para conferir musica e dança tradicionais etíopes (do altiplano). Em princípio, pensávamos que se tratava de um local turístico, mas ficamos contentes ao perceber que os de fora eram minoria. Com uma audiência composta por locais, um real local de musica e dança etíope.
A dança sagrada tradicional, a Esketa, envolve uma alucinada movimentação dos ombros e da cabeça, como se esses membros não fizessem parte ou trabalhassem de forma independente ao resto do corpo. Uma dança vertiginosa e sensual. Um movimento incrível e hipnótico.
E havia um desafio ao púbico! Muitos subiam ao palco para mostrar destreza ao lado dos carismáticos dançarinos.
Lalibela: a Jerusalém negra!
A nossa viagem à Etiópia teve como principal pilar conhecer as igrejas monolíticas, em Lalibela. As fotos que eu já tinha visto não deixava dúvidas de algo deslumbrante e completamente distinto de tudo o que eu já tinha visto.
Lalibela é uma cidade localizada no norte da Etiópia e está a 1500 metros de altitude.
A história da cidade se inicia com o envenenamento do rei Gebre Mesquel Lalibela, soberano amado pelo povo, mas envolvido com as rixas pelo poder em sua corte. Isso tudo lá pelo ano de 1189. Após vivenciar semanas em coma profundo, o rei disse ter se encontrado com Deus no momento de entrar no céu. Então, Deus teria dado uma missão específica a Gebre: criar uma nova Jerusalém, uma vez que a cidade sagrada havia sido invadida pelos árabes mulçumanos.
Os etíopes dizem que cerca de 60 mil camponeses foram transformados em pedreiros e que, em sete dias e noites, auxiliados por uma legião de anjos, retiraram milhões de toneladas de rochas para que as igrejas pudessem surgir.
Isso tudo foi contado por um guia extremamente simpático, Kassaye Akele, que nos levou para visitar as onze igrejas monolíticas. Passados mais de 800 anos, as incríveis e belíssimas igrejas parecem guardar suas essências. São indescritíveis!
Como eu mencionei no início do texto, nós chegamos em abril para presenciar a Semana Santa.
O Domingo de Ramos marca o final de um longo jejum de 56 dias. Pela tradição, nesse período, os fieis não comem nenhum produto animal. Durante os últimos três dias, da quinta-feira Santa ao Sábado de Aleluia, o jejum é mais estrito e alguns fiéis não comem ou bebem nada até a madrugada do domingo. O Sábado de Aleluia marca o ápice da festa religiosa.
As igrejas ficam lotadas de fieis já fracos, na matéria, mas embevecidos, no espírito. Há um cântico constante, um mantra, parecem todos em transe! Uma bengala de madeira os auxilia a ficar em pé! Com roupas simples de algodão, turbantes brancos que nos remetem à antiguidade, a população ajoelha-se e senta-se num movimento incessante, por horas. A reza toma forma de cantoria ritmada, um coro por súplicas terrenas, que os levem mais rapidamente a uma vida melhor.
A noite do Sábado de Aleluia marca o ápice da festa. Todas as onze igrejas estão lotadas, sendo que alguns poucos sacerdotes lideram os cânticos e rezas. A Igreja de São Jorge é a mais especial, mas nós escolhemos a Igreja Matriz (Bet Maryam). Chegamos por volta das 18h e ficamos por longas horas em cima de um muro ao sul da igreja. De lá, era possível acompanhar toda a movimentação. Centenas de mulheres se deitavam no chão, enquanto os homens se postavam num círculo principal.
Não havia iluminação, não havia qualquer sinalização, uma faixa de proteção e logo descobrimos que aquele ponto, onde nós estávamos, era o principal para os turistas. Em poucas horas, estava repleto. Poucos metros alem, havia um verdadeiro desfiladeiro. A imensa maioria dos turistas, idosos. Sinceramente, temi por todos.
Em certo momento, a cantoria se intensificou e mesmo as mulheres que estavam deitadas se levantaram. Havia uma energia inacreditável, nesse ritual que nos remetia diretamente à antiguidade, aos primeiros movimentos cristãos. Por volta das 23h, todos os presentes receberam velas, que foram logo acendidas. Um lindo espetáculo! Os lideres religiosos deram início a uma intensa procissão, que os levava a visitar todas as demais igrejas. Até por volta das 3h esse circuito, de puro transe, se mantinha.
O retorno e o golpe
O crescimento econômico da última década tem acirrado as divisões étnicas no país. O aumento das riqueza gerou forte concentração de rendas. Há uma luta separatista em curso no sul (Frente de Libertação Oromo). Fortes manifestações tomaram a região entre 2015 e 2016. A repressão aos protestos fez mais de mil mortos, em sua maioria civis.
Pouco menos de um mês do nosso retorno ao Brasil, explodiu nova tensão, dessa vez na região de Amhara (norte), também palco constante de conflitos étnicos e separatistas. Um oficial militar regional de alto escalão executou um general do governo e liderou a revolta, que foi logo sufocada. Na capital, Addis Abeba, houve forte troca de tiros próximos ao aeroporto internacional. O governo “derrubou” a internet no pais, para que não houvesse troca de informações e o golpe se dissipasse.
CLAUDIO MARQUES
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