UMA CRÔNICA DE ANO NOVO, PARA VITÓRIA.
Domingão. 26 de novembro. 18:35h. Em cima da hora para assistir mais um espetáculo como jurado do Prêmio Braskem de Teatro. Desta vez, no teatro da Aliança Francesa, às 19:00h. Saio já quase no tempo do primeiro sinal. Chamo um táxi? Resolvi ir no meu carro. Acreditei que encontraria uma vaga na praça do Largo da Vitória. No caminho, torci para não ter nenhum casamento na igreja do Largo e já me cobrava o por que não fui logo de “têxis”. Quase sorte? Não tinha casamento, mas não tinha vaga nenhuma na pracinha da igreja. Volto pela Rua da Graça até quase o final. 18:46h. Porra de correria. Em que transformei meus domingos, com esse negócio de ser júri de premiação de teatro?! Até Romeu (meu gato) tem reclamado. Avisto uma vaga-miragem do lado oposto. Será verdade? Joguei o carro pra direita. Esperei passar o fluxo e retorno habilmente até parar na minha, só minha vaga. Nenhum engraçadinho chegou antes de mim. Estacionei enfim a uns trezentos metros do teatro. Vaga legal, sem risco de multa. 18:55h. Atravesso a rua e dou aquela corridinha, alternada com meu passo sete léguas. Já exatamente na esquina da Ladeira da Barra com a Rua da Graça, tendo a fachada da Aliança Francesa no meu campo de visão, minha pressa foi interrompida por um grupo de mulheres confabulando, meio atônitas, sobre o que fazer com uma cadelinha prostrada na calçada. Coincidência: Uma destas mulheres era Olívia, uma amiga e ex-professora de espanhol, quando precisei hablar com sotaque chileno para o filme de Miguel Littin. Em rápida conversa, elas me disseram que a cadelinha encontrava-se sem forças e nem conseguia sair de onde estava. Expliquei que precisava assistir à peça no Aliança mas me comprometi em ajudar no sentido de tentarmos salva-la, após uma avaliação do seu estado. Trocamos telezaps e em duas horas depois um grupo de Watts App foi criado, com o título de “Dog Vitória.”
A partir deste momento, Vitória - como passou a ser chamada definitivamente por nós - iniciou recuperação e reparação do seu estado de quase inanição. Estava desnutrida, desidratada, com atrofias físicas sérias. Provavelmente sofreu várias agressões, tendo a pata dianteira totalmente imóvel, sem tônus, e a traseira comprometida por lesão no fêmur. Daí em diante, Vitória recebeu de Juliana, que é estudante de medicina veterinária, os cuidados e o abrigo em sua casa. Geramos um fundo a partir de nossas e outras contribuições e salvamos Vitória da desgraça de morrer com fome, doente e machucada no asfalto. Além de todos os cuidados básicos como vermífugos, vacinas e avaliação clínica geral, já foi operada da lesão no fêmur e está fazendo fisioterapia para recuperar os movimentos das patas traseira e dianteira. Como disse antes, só conheço uma pessoa deste grupo. Mas passamos a nos comunicar e encarar os cuidados e a expectativa de salvar Vitória como uma força-tarefa. Assim foi feito e ninguém do grupo se distanciou. Desta feita, nos salvamos do comodismo que mantemos quando avistamos de dentro dos nossos bólidos refrigerados, animais em situação de risco e abandono. Sempre achamos que o Estado ou alguma entidade de proteção irá dar um jeito logo mais e esquecemos.
Vitória está em franca recuperação. Ela é extremamente dócil, faz as suas necessidades sempre no tapete higiênico, o que prova que já teve um lar. E que provavelmente deve ter sido abandonada como fazem muitos donos quando constatam que será um fardo ter que assistir a um animal quando este entra na curva do declínio físico por alguma doença inesperada - ou mesmo pela própria velhice - até a sua morte. Que o bilu-bilu de papai agora não faz mais graça, mas faz “argh” cocô e xixi fora do lugar ou que por alguma outra razão da sua doença não possui mais a autonomia para se movimentar como antes. Entre ter que cuidar de um bicho doente, e ainda perder os seus gracejos, para muitos, não representa dor na consciência cindir com o animal nos planos afetivo e domiciliar.
Em verdade, o tipo que estaciona o carro numa rua ou avenida deserta, abre a porta sutilmente, coloca o animal no asfalto ou num canteiro próximo, e depois, sem olhar para trás e sem o mínimo remorso, desfaz-se sorrateiramente do convívio e do compromisso com o “seu” bicho “de estimação”, já está rompendo com a responsabilidade civil que assumira: assistir e guardar um ser indefeso e incapaz. Este (cidadão?) está cometendo um crime previsto na lei, mas por não existir rigor punitivo ou não ser muito denunciado, quase não é investigado. Torna-se algo fácil abandonar um gato ou cachorro na rua. O difícil é classificar os sujeitos (humanos?) capazes de cometer a atrocidade de abandonar um animal à própria sorte, depois de ter interpretado socialmente que gosta e cuida de um (ser?). O contraste com esta cena dócil, acontece e se repete todos os dias, muitas, inclusive, disponíveis na internet flagradas por câmeras de vigilância, atestam a veracidade e regularidade do abandono de animais. Uma realidade dura, cruel e decepcionante do ponto de vista da práxis humana. Para Marx, é por meio da práxis que o ser humano proporciona as transformações no mundo ao redor e – consequentemente – transforma a si mesmo. Seria aplicável para alguém que age deste modo?
Mas este desabafo, torna-se óbvio (ou menor?) quando evidenciamos que humanos também abandonam outros humanos. Sejam bebês em latas de lixo, velhos em asilos ou doentes em hospitais. Tem sido recorrente. Seja entre humanos, ou com estes seres (irracionais?) que preenchem de alguma forma nossa vida. É a realidade da desumanidade em carne e osso. A compulsória negação do que é essencial para carregarmos o fato de sermos humanos, racionais e sensíveis à existência.
Mas este desabafo, torna-se óbvio (ou menor?) quando evidenciamos que humanos também abandonam outros humanos. Sejam bebês em latas de lixo, velhos em asilos ou doentes em hospitais. Tem sido recorrente. Seja entre humanos, ou com estes seres (irracionais?) que preenchem de alguma forma nossa vida. É a realidade da desumanidade em carne e osso. A compulsória negação do que é essencial para carregarmos o fato de sermos humanos, racionais e sensíveis à existência.
Voltemos a Vitória: Não ao largo, mas à nova personagem, Vitória, real em nossas vidas agora, que por um triz, numa esquina do nosso caminho, nos proporcionou salvá-la. Ao mesmo tempo de seu renascimento, ela nos causa uma sensação reconfortante de satisfação e felicidade. Devem ser os dividendos da solidariedade, nos fazendo crer na vitória humana. Mesmo cientes que esta ainda não aconteceu. E deve demorar.
Em tempo:
Na segunda sessão de fisioterapia, a veterinária desconfiou que Vitória estaria prenha. E está. Dará à luz entre 4 e 5 filhotes. Ao avaliarmos ainda a sua sorte, constatamos que a sua tragédia poderia ter sido ainda maior.
Na segunda sessão de fisioterapia, a veterinária desconfiou que Vitória estaria prenha. E está. Dará à luz entre 4 e 5 filhotes. Ao avaliarmos ainda a sua sorte, constatamos que a sua tragédia poderia ter sido ainda maior.
BERTRAND DUARTE
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