Malu Fontes
Estamos todos diante de exércitos de ditadores de plantão nas redes sociais, vomitando regras do alto de seus argumentos, num comportamento típico daqueles alunos tolos e arrogantes que vivem contestando o professor sem saber o que diz só para tentar ficar bem na fita com os colegas. Diante dos ditadores de regras, me vêm sempre à memória as imagens em preto e branco de Caetano Veloso no Festival Internacional da Canção, no século passado, sob vaias de uma plateia de jovens raivosos que se achavam a antena do mundo. Vaiado, Caetano não se intimidava e falava ainda mais alto: “é proibido proibir”. Era 1968. Eu não participei do contexto daquela época, mas essa cena é um clássico e está disponível na web para quem quiser revê-la.
Cinquenta anos depois, diante de tantas proibições cuspidas como regras de vida ou morte pelos novinhos, pareço estar ouvindo deles, face a qualquer comportamento que não esteja em suas cartilhas do politicamente deformado em caricatura do exagero, pisca-piscas de purpurina chinesa anunciando: é proibido permitir. Todo mundo é bom, todo mundo é do bem, mas todo mundo bom e do bem quer xingar, ofender, arrancar a pele e extirpar o direito à vida de qualquer pessoa que ouse colocar sobre a cabeça, em pleno carnaval, um adereço de penas fakes made in China, só para ficar num exemplo dos mandamentos do que não pode.
ABRAÇADOR DE ÁRVORE - Quem não reproduzir e compartilhar os mantras, os cartazetes e as hashtags dessa turma, é sentenciado a uma espécie do Vale dos Leprosos de Geddel. Tá osso lidar com o efeito manada dos neoativistas do bem que se comportam como haters. Na primeira coisa que você escreve diferente da bula da turba, até o abraçador de árvore do Capão sai da trilha do bem e aparece nas redes sociais para lhe mandar tomar naquele lugar.
Usar um cocar fake passou a ser uma agressão inominável e um desrespeito criminoso aos índios. É muito mais: é hiperssexualização da mulher Índia, é racismo, é etnocentrismo de brancos privilegiados escrotos, é muito errado e feio e é crime de xenofobia com potencial suficiente para lhe levar ao Tribunal de Haia.
JANAÍNA E LENNON - Quando foi que os brasileiros se perderam nessa zona cinzenta de interseção entre essa indústria do bem tão caricata e esse policiamento odioso e agressivo contra quem não adere ao ativismo de posts nem às bulas concebidas pelas cabeças dos ativistas de hashtags? Muita gente que acha Janaína Pascoal, a musa do impeachment de Dilma Roussef, uma louca descabelada agressiva esquece de perceber que o próprio comportamento está mais para Janaína do que para John Lennon e seus versos na toada Imagine e Love and Peace, como quer parecer para os incautos. Há poucos dias Janaína reapareceu pregando a proibição do carnaval. Sua tese é reta: como pode um país permitir que haja carnaval se a violência mata centenas de pessoas abatidas a tiros todos os dias? Tem que proibir, ora. Não a matança, claro, mas o carnaval.
Quem há de negar que a preocupação de Janaína com a violência é mais do que legitima? Mas, por outro lado, quem imbecil a ponto de acreditar que, se não houver carnaval, o Brasil deixará de ser violento e ninguém mais será vítima desse estado de coisas que está aí? Do mesmo modo, vale perguntar o que está sendo colocado na água que vem sendo ingerida por pessoas que parecem acreditar que, a partir do momento em que ninguém usar mais fantasia de índio, usar um cocar ou colar de penas no carnaval, os índios passarão a ter direitos assegurados e deixarão de ser massacrados por latifundiários, posseiros, grileiros ou mineradores? E alguém acredita mesmo que há alguma relação torta entre a violência contra a mulher e a decisão de homens saírem às ruas no carnaval travestidos, com minissaias de tule sintético e batom vermelhão barato?
FACINHOS - Que as pessoas acreditem em seus manuais comportamentais para suas próprias vidas, tudo certo. O problema está é no fato de a manada auto convocar-se para fiscalizar e perseguir o comportamento de todo mundo, certíssima de que está autorizada pelos tribunais celestiais e universais a fazer isso. Com base em quais parâmetros um bando de gente que não conhecemos e em quem não reconhecemos nenhuma autoridade, sabedoria ou conhecimento, para e sobre o que quer que seja, acha que pode determinar e ditar o que podemos fazer, usar e dizer? Dirijam suas próprias vidas, ora.
Façam suas bulas e formem suas comunidades, mas eu e muita gente não aceitamos ordens e tampouco convites para fazer parte dessa ditadura do nosso comportamento. Só um clube sob efeito de alucinógenos para defender sem medo de passar vergonha a tese de que usar um penacho na cabeça no carnaval é quase equivalente a um crime contra a humanidade. São microditadores que arrotam saber onde ficam todas as fronteiras do certo e do errado, do pode e do não pode. São militantes do bem universal, mas ofendem, agridem e xingam sem pestanejar. Não querem discordar. Querem apontar para você e dizer que você cometeu erros por pensar assim ou assado. Segundo quem? Seriam risíveis se não fossem desrespeitosos e ofensivos. Como têm linguagem atrofiada e pensar exige construir algum argumento razoável, preferem empacar na simplificação diante de quem se recuse a entrar em suas caixinhas. Já no segundo questionamento, anunciam toda a inteireza da sua textualidade: chamam o interlocutor de preconceituoso, privilegiado e chato, esses substantivos facinhos, apropriadíssimos para justificar teses insustentáveis. E por falar em chatos, esses policiais do repertório alheio e donos da cultura de todos os povos e todas as etnias têm um talento insuperável para a chatice.
Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA
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