domingo, 25 de março de 2018

CLIMA DE FIM DE FEIRA


Comerciantes do Mercado do Rio Vermelho devem R$ 2,5 milhões
Valor é da dívida acumulada de 2014 a janeiro de 2018

Os dias correm lentamente, sempre com muito calor, no Mercado do Rio Vermelho, na Avenida Juracy Magalhães Júnior. A temperatura não ameniza nem nos dias de chuva, quando comerciantes se alternam para secar as goteiras que pingam dentro de alguns dos 171 boxes – 140 ocupados. De segunda a segunda, há também outra constante: a preocupação dos varejistas ao ver a queda no fluxo de clientes. A tensão é aparente. E não à toa: a dívida acumulada de alguns permissionários chega a R$ 2,5 milhões, no período de 2014 a janeiro de 2018, como mostra documento a que teve acesso o CORREIO. 
Chegada a hora de pagar pelas taxas, administradas pela Enashopp e pela Superintendência de Desenvolvimento Industrial e Comercial (Sudic), órgão do governo do estado, os comerciantes veem o caixa quase sempre abaixo do valor da cobrança. Apenas no mês de janeiro, o valor das dívidas chegou a R$ 180 mil, mostra, ainda, a lista de despesas – dos 113 varejistas, mais da metade não conseguiu arcar com as tarifas. A Enashopp afirma que a taxa de inadimplência acumulada no local, de 2014 a 2018, é de 14,5%, e defende que não houve redução de clientes. 
Goteiras em cima de fogão de restaurante no mercado (Foto: Marina Silva/CORREIO)
Os varejistas começaram a se embaralhar com as dívidas após a entrega da nova Ceasinha, transformada em Mercado do Rio Vermelho, entre 2012 a 2014. Desde então, eles estimam que o movimento esteja 50% menor. “A gente passa o dia, praticamente, olhando um para cara do outro”, desabafa Marinalva Borges, comerciante há mais de 30 anos no local. É também diante da queda na movimentação que os comerciantes passam a questionar o valor das taxas.
Na lista das cobranças, está o preço do condomínio, orçado em R$ 80 por metro quadrado. O valor está na média da cobrança em shoppings de Salvador para abrir um restaurante em praças de alimentação, que varia de R$ 40 a R$ 150.  Já o aluguel de um box, também por m², custa R$ 60 no Mercado. Na antiga Ceasinha, os proprietários de uma loja de 34,5 m² pagavam R$ 1.125 por aluguel e condomínio; hoje, num boxe de 39 m², pagam R$ 3.150.
As semelhanças entre os valores cobrados no Mercado e em shoppings endossam as críticas à nova gestão. Em 2013, ano em que a antiga Ceasinha era reformada, a Empresa Baiana de Alimentos (Ebal) concede a administração do espaço para a Enashopp - empresa paulista que acumula experiência na gestão de shoppings pelo país e na capital baiana, como o Barra e o Itaigara. A Ebal cedeu a coordenação das Ceasas para a Sudic no dia 8 de janeiro de 2016, devido a crises internas.
Para permissionários ouvidos pela reportagem na última terça-feira (20), a falta de experiência da empresa com mercados populares é crucial para a eclosão da crise.
“A gente não quer uma coisa estadunidense aqui, a gente não quer castanha e camarão seco com cara de Miami”, diz a atriz e empresário Rita Assemany, há oito anos à frente da Oropa França e Bahia junto à irmã, Gal Assemany.
Adeus à Ceasinha 
A Ceasinha foi revitalizada para se tornar polo comercial e turístico de Salvador. A obra, de fevereiro de 2012 a 15 de maio de 2014, foi financiada pelo governo do estado, com suporte da Caixa Econômica Federal e participação da Itaipava, única marca de cerveja vendida no Mercado. Valor: R$ 28 milhões. Os 126 boxes do equipamento foram substituídos por 171 salas. E os comerciantes ganham mais espaço para vender seus produtos: o tamanho mínimo dos boxes passa de 8,5 m² para 22 m². 
Apesar do local mais espaçoso, os permissionários começam a ouvir reclamações de clientes. O estacionamento, agora pago, se torna um problema. Por uma das 240 vagas é preciso pagar R$ 3 por hora. No Shopping Barra, duas horas saem por R$ 6 e cada hora adicional é tarifada em R$ 1. “Já basta ter que pagar no shopping. Aí eu vou para feiras de bairro mesmo ou supermercados”, comenta Mara Viana, 51, moradora da Pituba que deixou de frequentar o Mercado. 
A diminuição do fluxo em decorrência do estacionamento pode ser verificada em números. A lista de despesas de janeiro deste ano mostra que a receita com o estacionamento foi orçada em R$ 75 mil. Destes, somente R$ 43 mil entraram na conta. Os clientes também começam a reclamar da falta de ventilação, amenizada somente por ventiladores colocados na praça de alimentação por iniciativa dos comerciantes. 
Boxe fechado e corredor vazio (Foto: Marina Silva/CORREIO)
O presidente da Associação dos Permissionários do Mercado, Dionísio Rios, contou que o problema da falta de ventilação foi relatado à Sudic. Mas a superintendência não respondeu à reportagem se e quando haverá solução. Os permissionários solicitaram um novo encontro para discutir a possibilidade de reduzir os custos de aluguel e condomínio. A reunião, segundo apurou a reportagem, deve acontecer na primeira semana de abril. “O que a gente quer é alguma ação para que a gente não quebre”, desabafa Rita. 
Os custos atribuídos a cada permissionário serão debatidos no encontro. Mas, segundo a Enashopp, todas as cobranças foram repassadas aos permissionários antes da inauguração do empreendimento. A empresa também defende que as reclamações convergem com as demandas gerais dos operadores brasileiros, “que sofreram avassaladoramente com o cenário econômico desfavorável ao longo dos últimos dois anos”.  
Fechamento de boxes 
Mas, da inauguração até 2017, pelo menos 20% dos permissionários, de acordo com a Enashopp, já fecharam seus boxes por não conseguir acompanhar as despesas. A empresa diz ter registrado, em contrapartida, uma média de 5% de abertura de novos negócios. Na data da inauguração, informou a empresa, apenas 97 dos 171 boxes estavam ocupados. Cinco anos depois, o número cresceu, mas ainda está aquém da plena ocupação: 25 espaços estão fechados. Em junho deste ano, deve ser lançada licitação pública para ocupar os boxes.
Por trás das lojas fechadas, estão empresários como Ricardo Ribeiro. Em março de 2015, ele inaugurou uma sede do Caranguejo do Mercado. Começou empolgado com a perspectiva de lucros. Em dezembro de 2017, após constantes prejuízos, fechou o comércio.  
“A gente pagava um preço de shopping para o retorno que tinha. No início, deu para segurar. Depois, estava tirando de negócios saudáveis para colocar dinheiro lá”, afirma. A média de gastos com aluguel e condomínio, estima ele, estava em R$ 18 mil por mês. 
Com o pedido de não ter o nome divulgado, outra ex-permissionária relata o clima de tensão entre os colegas que, a duras penas, mantém os boxes no Mercado. “É um clima frio lá dentro. Em todo mercado popular, você vê um pouco daquela sujeira visual que te atrai: as frutas, as verduras aparecendo. Lá não. Estão todos preocupados”, confessa. A varejista conseguiu manter o espaço que tinha por três anos, da inauguração até agosto de 2017. “Tinha tudo para ser o novo point da cidade, uma pena”, continua.
A preocupação é mesmo visível entre os permissionários que trabalham lá. Um deles, também com o pedido de não ter o nome divulgado, trabalha no local há quase 35 anos. Desde a transformação da antiga Ceasinha, a perda de clientes tem até prejudicado o tratamento para o diabetes. Há, aproximadamente, dois anos, ele não consegue conciliar os ganhos com as taxas cobradas. No mínimo sinal de pergunta, o varejista treme, a lágrima escorre pelos olhos. “Se eu sair daqui vou fazer o que? Eu não sei fazer nada. Minha vida está aqui dentro”, desabafa. 
Comerciantes cobrem com uma lona parte de mercadoria por causa de goteira(Foto: Marina Silva/CORREIO)
Ceasas surgiram na década de 1970
Os Centros Estaduais de Abastecimentos, também chamados de Ceasas ou Ceasinhas, foram um projeto governamental criado nos anos 70 para aperfeiçoar e baratear a distribuição de hortifrutigranjeiros. Em Salvador, o Rio Vermelho é o primeiro endereço a receber a Ceasa, ainda no início da década. À época, era chamada de feira da Chapada do Rio Vermelho, uma região ainda erma da cidade, e vendia basicamente frutas e verduras a céu aberto.
A Ceasinha, pouco a pouco internalizada na rotina do soteropolitano, acompanha o desenvolvimento do bairro. O local, até pouco antes propriedade quase absoluta da família Gonzaga, passa a ser loteado, se torna referência, principalmente na boemia, conta o arquiteto e historiador Chico Senna. A população contava, até então, com os mercados do Ouro, da família Amado Bahia, Modelo (mercado de abastecimento da cidade), da Baixa dos Sapateiros, de São Miguel, de Santa Bárbara, de Sete Portas e com a Feira de São Joaquim. 
Tempo a tempo, as feiras e mercados livres decaíram, relata Chico. Esses espaços, continua, caíram no raio da sofisticação, sem que a população dependente de atividades mais informais acompanhasse o avanço. “Quando você transforma um mercado popular em um mercado sofisticado, você muda o público do mercado. Houve melhorias, mas uma camada foi prejudicada. Você não criou outro mercado alternativo e isso desequilibra uma sociedade”, explica ele, ao comentar a reforma na antiga Ceasinha. 
Hoje, em Salvador, existem nove mercados populares municipais, segundo a Secretaria de Ordem Pública de Salvador. Deles, seis foram reformados. A Sudic, do governo do estado, por sua vez, gere outros quatro mercados – entre eles, a Ceasa do Ogunjá, que mantém o antigo modelo da Ceasinha do Rio Vermelho.
Na avaliação de Neilton Dórea, vice-presidente do Instituto de Arquitetos da Bahia, algumas modificações, como a da Ceasinha do Rio Vermelho, seguem uma tendência baiana. “Virou moda transformar tudo que é simples em algo de impacto, que não necessariamente é necessário. É uma mania de mudar a tipologia da arquitetura, fazer uma atualização que não necessariamente é adequada culturalmente”.
 

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