Alguns analistas
dizem que os mais velhos hoje já não entendem seus filhos e são condenados a
viver, no mundo digital, como imigrantes no próprio país.
Meu
caso é mais prosaico. Sinto-me como imigrante no Brasil ao assistir a uma
sessão do Supremo Tribunal Federal.
O Brasil que habitava desde a redemocratização pelo
menos tinha esperanças. O que se vê hoje é o declínio de toda a experiência
democrática das três últimas décadas. O sistema político foi engolfado pelos
custos de campanha, corrompeu-se e perdeu o contato com a sociedade.
O Supremo mostrou-se uma parte apenas desse corpo
em decomposição. Não apenas pelo mérito de sua discussão, mas também pela
forma. Quem iria supor que num momento histórico um ministro iria alegar, ao
vivo, uma viagem para interromper a decisão. Ou que, também num momento
histórico, era necessário respeitar o horário regimental.
Levamos o Brasil mais a sério. É impensável que,
numa grande questão nacional, se reunissem por duas horas, fizessem uma hora de
lanche e voltassem cansados, sem condições de raciocínio.
As coisas acontecem, e tudo o que dizem aos
repórteres é: isto é inadmissível. Muitas coisas no Brasil hoje são
consideradas, justamente, inadmissíveis: violência política, tiros, troca de
insultos.
Solidário com todas as vítimas, tento avançar um
pouco e perguntar: o que produz tantas coisas inadmissíveis no Brasil? E como
entender suas causas e recuperar a convivência?
Muitas vezes citado em momentos críticos, o filme
de Ingmar Bergman “O ovo da serpente” mostra os conflitos na Alemanha na
ascensão do nazismo. As circunstâncias são diferentes mas uma lição histórica,
que talvez valha para outros momentos, é que a ascensão de um movimento
autoritário não é algo que se afirma em contextos de grandes erros estratégicos
da esquerda.
O Brasil está dividido em torno de uma concepção de
justiça. Toneladas de provas, milhões de dólares, ruína da Petrobras, todos
esses fatos descobertos pela Lava-Jato não podem ser negados.
Até podem, mas a um preço muito alto para a própria
democracia. O Supremo hesita agora num momento decisivo, o da prisão de Lula.
Esta hesitação leva em conta os movimentos de
massa, pró e contra. Mas quando democráticos, não fazem tanto mal quanto a
perda de confiança na Justiça, um ácido que corrói a convivência e estimula
saídas desesperadas.
A tática de lançar a candidatura de Lula acabou
ofuscando a própria campanha eleitoral. Em outro país, ela já teria começado.
Lula, por sua vez, não se comporta como candidato a presidente, mas sim à
própria liberdade.
Em vez de estarem em jogo os principais lances da
reconstrução nacional, a discussão estacionou num debate que sucessivos
julgamentos já tinham esgotado. Infelizmente, a esquerda vê como adversário
quem reconhece a realidade dos fatos e, com isso, coloca num campo adversário
milhões de pessoas que não são autoritárias nem fascistas.
A crise que estamos vivendo é resultado do fracasso
de um longo governo da esquerda. Seus erros estimularam o surgimento de
inúmeras tendências na direita, inclusive a mais autoritária.
O jogo da radicalização pode ser jogado com gosto
por alguns. No entanto, seu desdobramento seria um país dividido, uma saída
messiânica de um lado ou de outro. Esse argumento não comove nem direita nem
esquerda autoritárias. Ambas contam com o conflito como dinâmica de sua
estratégia de poder.
Mas é preciso fugir da lógica que cria milhões de
imigrantes no próprio país.
Palmas para Gabeira
ResponderExcluirPalmas para Gabeira, articulista de rara qualidade intelectual
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