Sacramental: tem mais de 500 anos e foi o primeiro livro impresso em Portugal
O primeiro livro impresso em Portugal tem mais de 500 anos. Descobre o que o torna tão singular - e o que ainda hoje se pode aprender com ele.
O ano é 1488 – ou talvez 1489. Em Chaves, longe dos grandes centros urbanos, surge um marco inesperado na história da língua portuguesa: o Sacramental, o primeiro livro alguma vez impresso em território nacional, e também o mais antigo em português.
Tinha por base um texto castelhano do século XV, mas a tradução e adaptação à nossa língua tornaram-no numa obra singular e valiosa, tanto do ponto de vista linguístico como cultural.
Escrito originalmente entre 1421 e 1425 por Clemente Sánchez de Vercial, um clérigo leonês, o Sacramental foi concebido como manual pastoral. A sua função era guiar os sacerdotes na administração dos sete sacramentos e na confissão dos fiéis.
Mas mais do que um compêndio religioso, tornou-se um reflexo da sociedade medieval, com exemplos morais, histórias edificantes, ditos populares e até fábulas – tudo num estilo direto e acessível.
Dividido em sete partes, cada uma dedicada a um sacramento, o livro apresenta questões e respostas que os confessores deveriam usar para orientar os fiéis.
No entanto, a sua riqueza vai além da doutrina: o Sacramental descreve hábitos alimentares, relações familiares, práticas laborais, crenças, medos e até questões ligadas à sexualidade. É, nesse sentido, uma janela aberta para o quotidiano de finais da Idade Média.
Apesar da sua popularidade, nem tudo correu bem. Algumas ideias do autor, como a possibilidade de salvação para judeus e muçulmanos, ou a crítica à severidade com que se tratavam certos pecados, foram consideradas polémicas. Já no século XVI, a Inquisição proibiu e queimou várias edições do livro.
Em português, conhecem-se quatro edições impressas: duas no século XV (Chaves e Braga) e duas no século XVI (Lisboa e Braga).
A mais antiga, atribuída possivelmente a Rodrigo de Eixea, foi impressa em Chaves e contém uma dedicatória ao rei D. João II, o que permite datá-la antes de 1495.
A segunda edição, em Braga, foi também da autoria de Eixea e encontra-se melhor preservada, apesar de incompleta.
As edições de Lisboa (1502) e de Braga (1539), por sua vez, foram impressas por Valentim Fernandes e João Álvares, mas acabaram por ser raríssimas: a censura religiosa encarregou-se de destruir quase todos os exemplares. Apenas fragmentos chegaram aos nossos dias.
Hoje, sobreviveram dois exemplares completos em português: um guarda-se na Biblioteca Nacional de Portugal, o outro na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Ambos foram digitalizados e podem ser consultados online.
O exemplar de Lisboa, com 240 folhas, contém uma dedicatória régia e um prólogo do tradutor, identificado como João Gomes de Lisboa. O do Porto, mais curto, tem 184 folhas e apresenta lacunas no início e no fim.
Para além do seu valor histórico, o Sacramental permite observar a evolução da língua portuguesa. Palavras como feyto, sãtigo ou sacramêto testemunham as transformações ortográficas e fonéticas que a língua sofreu entre os séculos XV e XVI.
Mas, mais do que uma curiosidade filológica, o Sacramental é um espelho de um tempo. Numa época em que se imprimia pouco, e se lia menos ainda, esta obra espalhou-se pela Península Ibérica e teve impacto real na vida religiosa e social.
Que tenha sobrevivido a censuras e fogueiras diz muito sobre a sua resiliência e também sobre o fascínio que ainda hoje pode exercer. Afinal, poucos livros podem dizer que foram os primeiros a dar forma impressa ao português.

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