quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

AS PEDRAS DE CAMBRIDGE

Foto: Dimitri Ganzelevitch
 

Cada manhã me enfurno no metrô fedorento. Desde Collingham Gardens vou até a Central School Arts and Crafts, lá do outro lado do centro de Londres, mais além de Leicester Square, onde estudo arte.

Sejamos francos: não me mato no estudo. Desenho nus ao vivo sem muita convicção. Geralmente indiferentes senhores barbudos e sonolentas mulheres de peito caído. Num ponto todos os alunos concordam: os mais velhos são sempre mais interessantes para trabalhar. Pausa do tea time. Esta água escura com umas gotas de leite não provém com certeza de Harrod´s ou Fortnum and Masson.

Décadas mais tarde, visitando a Bienal de Veneza, descobrirei que, numa daquelas friorentas manhãs londrinas, talvez eu tenha entrado na fila do chá logo atrás do genial Lucian Freud. Estudou na mesma escola, conforme afirma meu catálogo.

Retirou do ensino bastante mais de que eu...

Hora do almoço. Vou a National Gallery. Sentado num banco frente aos severos e sublimes retratos de Rembrandt, devoro os dois sanduíches preparados de manhãzinha. Aos sábados, ando pelo Tamisa até a Tate Gallery onde despojadas telas monocromáticas de Rothko me comovem estranhamente. Terei encontro parecido em São Paulo com as grandes superfícies de Ianelli.

O leitor queira perdoar a ostentação de tantos nomes. Lembrá-los e escrevê-los é como um jogo onde minhas lembranças vão pulando de estrela em estrela na escuridão azulada do passado. Sonhos loucos e temores, impaciência, convicções definitivas e inseguranças mil, impulsos... Marcos da juventude.

 

Aceito por um grupo de irrequietos estudantes ingleses, programas não faltam. Em domingos primaveris, um deles, Michael, mais abonado, nos leva pelos arredores da capital num maravilhoso conversível amarelo e preto dos anos 30.

Assim descobrirei os tesouros de Hampton Court, Oxford, Windsor...

No fim dos anos 50, a Inglaterra ainda barata, provinciana e bucólica, é caracterizada por tradicional simultaneidade de convenções e transgressões.

Preparar um leve piquenique, já em si, é uma festa. Cedo embarcamos.

Chegamos a Cambridge. Passeio pelas universidades medievais e neoclássicas, solenes e misteriosas, todas mergulhadas em densa, mas comportada vegetação.

O sol nos acompanhou desde cedo e faz brilhar o gramado, luxuoso carpete que, pontuado de minúsculas margaridas, enfeita as margens do riacho.

Grupos de estudantes, remando em leves canoas ou espalhados pelo campo, com blazer de listras grossas e rígido chapéu de palha. Devem estar posando para algum cartão postal.

 

“Depois do almoço iremos ver esta casa, lá em cima” decide Michael.

- Você conhece o dono? questiono.

- Não, mas é um ex-diretor da Tate, hoje aposentado, que gosta de abrir sua casa e mostrar sua coleção para quem deseja visitar.

É verdade. Pouco após tocarmos a campainha, um senhor alto, magro, sessenta e tantos anos, terno claro e óculos discretos, nos convida a entrar. Casa ampla, luminosa, despojada e profundamente engajada na arte moderna. Vários nomes nas paredes nos são familiares. Noto, no parapeito das janelas, pedras de formas diversas cuidado-samente colocadas. Pergunto o que são.

“Pedras que encontro nas minhas andanças. Atraem-me pela sua cor ou formato. Cada uma me lembra um momento.”

Fico contemplando estes silenciosos pedaços de memória.

 

Ao sair desta casa, permanecerei sem grande vontade de conversar.

Algo mudou.

Talvez porque as nuvens se fizeram mais cinzentas e pesadas, ou porque o assento, de repente, ficou mais desconfortável.

A brisa do fim de tarde faz do dia simples lembrança fugaz. Um domingo se evapora, sem definição...

 

No entanto, este domingo e esta visita vão mudar o rumo de minha vida.

Passaram-se mais de cinqüenta anos, perdi até o nome de meus amigos britânicos. Alguns devem ser avós, outros talvez morreram. Renunciei ás veleidades artísticas, voltei algumas vezes à Inglaterra, sem nunca, porém, retornar a Cambridge.

Guardo no fundo de minhas emoções inconfessas a visita à casa do homem da Tate como gema preciosa, talismã que teve sobre minha existência radical influência.

 Hoje, observando o balançar das palmeiras desde o terraço sobre a baía onde dormem os cargueiros, um velho cético, lutando contra um absurdo nó na garganta, se surpreende a levantar para as púrpuras nuvens do crepúsculo uma forma de oração, agradecendo aquele sábio inglês que abriu tão belo e longo caminho a um jovem ainda sem rumo.

Escureceu. Chegam os morcegos. Abandono o mar para o aconchego da sala.

Varro com meu olhar as obras de arte nas paredes, as pedras espalhadas pelos móveis, pedras que juntei ao longo da vida. Elas me falam de Monte Alban, Machu-Pichu, Petra, Assuam, Itaparica ou Istambul. Confesso ter perdido a memória de algumas, mas nem assim poderia me separar delas. Elas não permitiriam.

Mas onde estarão agora as pedras de Cambridge?

 

                                                    Dimitri Ganzelevitch                                                                              Salvador, 7 de dezembro de 2007.

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Não coleciono pedras como Dimitri e meu irmão Thales de Azevedo Filho, maior autoridade baiana em Leonardo da Vinci. Estudei arquitetura na Escola de Belas Artes, na rua do Tijolo, onde uma poucas casas exibiam um dístico: Família. Nós alunos de arquitetura estávamos proibidos de entrar no atelier de Modelo Vivo comandada pelo inesquecível pintor Alberto Valença e pelo jovem Juarez Paraíso. Era o mesmo de Cambridge, velhos mendigos barbudos e putas de peitos caídos recrutados por Juarez na prodiga rua do Tijolo. Onde estarão aqueles modelos vivos agora? Dormindo tranquilamente, como dizia Bandeira

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