O TESOURO INESGOTÁVEL DA TRADIÇÃO ORAL
O escritor argentino Jorge Luis Borges sentia-se atraído pela ideia “de que todos os eventos ocorridos no universo, por ínfimos que sejam, concorrem necessariamente para os demais eventos que lhe sucedem”. Segundo essa concepção, para que tenham surgido obras como as de Shakespeare, Dante e Tolstói foi preciso a contribuição de milhares e milhares de narradores de menor relevância ou anônimos, laborando de modo ininterrupto em todas as latitudes do nosso planeta, construindo rios comunicantes de saberes.
Sem esses narradores filósofos, que o roteirista de cinema e escritor francês Jean-Claude Carrière sabiamente chama de “mentirosos”, faltaria alicerce para o edifício da cultura ocidental e oriental, em que brilham no andar mais elevado, lá no topo, os gênios da humanidade.
Ao longo de 25 anos, o escritor francês Jean-Claude Carrière ouviu, leu, selecionou e por fim recontou histórias do mundo inteiro, num primeiro volume intitulado O Círculo dos Mentirosos, em que defendeu num magnífico ensaio todas as justificativas para ter se dedicado a essa tarefa, os motivos porque deixou de lado os mitos, os relatos fantásticos e as fábulas morais, preferindo “histórias elaboradas, frutos de reflexão, feitas para ajudar a viver, eventualmente a morrer, concebidas e contadas em sociedades organizadas e consolidadas, que se acreditam duráveis e, por assim dizer, civilizadas”. Noutros dez anos de pesquisa e escuta ele aprontou um segundo volume.
Ao falar sobre as narrativas do livro como bens que povos roubam de outros, Carrière toca na relação de culturas dominantes e dominadas. A história do homem é uma sucessão de guerras e rapinagens. Inglaterra, França, Espanha, Alemanha e Estados Unidos, para citar apenas esses conquistadores expansionistas, se apoderaram de tesouros das civilizações egípcia, indiana, chinesa, grega e árabe, atulhando seus museus com o que melhor produziram esses povos.
Refiro-me aos bens perecíveis, que desaparecem com o fogo, os maremotos e as guerras: pinturas, esculturas, cerâmicas, joias, tapeçarias, sarcófagos, palácios e templos. A apropriação feita por Carrière é de um saber transmitido de forma oral ou escrita, principalmente através de livros, que podem ser reproduzidos infinitamente.
Carrière não guarda o que adquiriu e colecionou numa vida de estudos, pesquisas e coletas. Trabalha para nos transmitir esse legado, com sua voz narrativa e escrita própria. E o faz de maneira respeitosa, considerando que “A beleza de uma história vem quase sempre de certa obscuridade”. Põe um foco de luz sobre as histórias de todos os tempos, sem tirar-lhes o encantamento e o mistério.
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