sexta-feira, 22 de junho de 2018

FERNANDO COELHO ME ENTREVISTOU


Foto de Fernando Coelho Poeta.

DIMITRI GANZELEVITCH, 
UM FRANCÊS SOTEROPOLITANO, SIM, SENHOR



Fernando Coelho Poeta





Não é verdade que Salvador seja ainda a terra da felicidade. As últimas administrações públicas na prefeitura e no governo do Estado, se encarregaram de diluir o patrimônio arquitetônico da primeira capital do Brasil, a troco do mau gosto e interesse imobiliário, e trancafiaram o baiano, lutador, numa espécie de gaiola ideológica mortal, e se vê isso explícito nos textos de Aninha Franco. Quantas e quantas vezes vi Luciano Serva Serva Ferreira, o almirante de Pituaçu, chorar comigo o afundamento de Salvador? Carybé me disse, um dia, que temia que a cidade virasse um paliteiro. Salvador cai a machadadas, é só acompanhar a campanha do humorista, poeta e jornalista Nildão Humor
contra a derrubada de árvores centenárias pelo prefeito ACM Neto, e os desmandos nas áreas mais turísticas e tradicionais, como o Farol da Barra, como tanto fala a jornalista Denis Rivera. Matam Salvador a sopapos de ignorância ambiental. Ainda bem que os Orixás resistem.

Acompanho, há muito, a luta de Dimitri Ganzelevitch, um baiano de coração, nascido no Marrocos, então protetorado francês, denunciando os maus tratos à cidade, em suas ruas, casarões históricos, gente do povo. Aqui, a história dele, sua rica trajetória de vida e como ama a cidade tão amada por todos, São Salvador da Baía de Todos os Santos. 

“Cheguei para morar na Bahia em 1975. Há, portanto, 43 anos que a mesma pergunta, com exagerada freqüência, vem bater à minha porta: “Por que veio morar aqui?” Uns, com tom de profunda incredulidade, “quem me dera, a mim, estar no hemisfério norte!”, outros com uma pontinha de suspeita, “seria um novo Ronald Biggs?”. Ninguém muda assim, de um dia para o outro, de cultura, de clima, de idioma, de comportamento, sem motivo. Hoje chegou a vez de desvendar o segredo. Foi pela força de um disco. Um LP, como se falava na época.

Minha mãe, separada de meu pai, viveu durante 25 anos com um português, em Lisboa. Antônio Lopes Ribeiro era cineasta, crítico de cinema, poeta, escritor. Irrequieto, magro, nervoso, fazia sempre grandes discursos com muitos gestos, fumava um cigarro atrás do outro. Teve imensa responsabilidade na minha formação de adolescente. Na sala, reinava um magnífico aparelho de som, um Grundig. Rádio e toca-discos. Nele, podíamos ouvir, não só os modernos 33 rotações, de vinil, mas também os velhos 78, em frágil bakelite. Havia de tudo, desde Chopin, Brahms, Chaliapine e Caruso, até Amália, Piaf e Dick Farney. Que bela voz tinha este Dick! Parecia veludo...

Antônio viajava muito. Uma vez veio do Brasil, onde encontrou personalidades do mundo do cinema e da música. Entre vários discos, havia um, com uma caricatura mostrando um forte mulato de camisa listrada e chapéu de palha. Dorival Caymmi. Uma seta indicava Maracangalha.
As canções de Caymmi foram, para mim, uma viagem num mundo mágico, quente, doce e colorido. Alegre e poético também.

A vida dá suas voltas. Meu tio Boris trabalhava para a Unesco no Rio de Janeiro. Convidou-me para conhecer o carnaval. Na minha bagagem, eu trazia uma carta de apresentação para Orígenes Lessa, autor do O Feijão e o Sonho, e grande especialista em literatura de cordel. A companheira Maria-Eduarda era filha do conde Marim, algarvio com muita honra. Me desafiaram. “Vamos ao casamento do filho de Jorge Amado, em Salvador. Porque não vem com a gente?” Por que não? Fui. Foi grande a emoção de encontrar, na casa do famoso escritor, o autor de Eu vou para Maracangalha, e de tantas pérolas da música brasileira. Pouco mais fiz do que apertar timidamente sua mão e olhar para ele a cada minuto. Durante uns cinco dias, passeamos pela cidade, muitas vezes ciceroneados por um jovem poeta, muito mulherengo, Ildásio Tavares. Lembro de uma seresta nas areias do Abaeté, com velas plantadas em pequenas dunas ao abrigo da brisa. A beira da lagoa parecia um céu estrelado ao avesso. Tão inocentes, em 1971, aquelas areias...

Vim morar na Bahia em 1975 e descobri que o colorido cartão postal tinha um avesso, branco e preto, bastante mais fastidioso. Teria que preencher os espaços vazios com meus próprios pincéis para resistir a uma realidade que seria, no princípio, dura e sem piedade.

Em 1983 encontrei novamente o magnífico mulato, novamente na casa da rua Alagoinhas. Novamente apertei, tímido, sua mão. Afinal, o que é que um pobre imigrante simplório nas suas certezas de europeu banhado em Molière e Debussy, mas incapaz – até hoje – de sambar ou contar uma piada, poderia ter ousado falar com um Dorival Caymmi?

Os anos passaram, fiz minha esta terra que tanto critico aqui e que tanto defendo quando a atacam lá fora. Segui meu caminho por verdes vales e poeirentas caatingas, lamaçais e águas mornas. Sempre guardei na memória a honra de ter apertado, por duas vezes, a mão de um homem que podia levar um ano para fazer uma só canção, mas oferecia ao mundo pérolas de mares fundos, onde belas sereias nadam com pescadores enamorados.

Perdi, nas mudanças, o disco, até um amigo rastafari, amante de boa música e comerciante esclarecido do Pelourinho, sabendo de minha procura, me oferecer um velho exemplar, idêntico ao de minha lembrança de adolescente.

Hoje, abro a televisão para enfrentar a triste notícia. Dorival Caymmi acaba de morrer aos 94 anos, rodeado por uma maravilhosa família que consegue viver de música sem nunca ter caído nos fáceis sucessos descartáveis que, agora, poluem nossa sociedade consumista e desmemoriada.
Hei de ir, ainda este ano, mesmo sem Amália, a Maracangalha. Se Deus quiser”. 



(Dorival Caymmi morreu em 16 de agosto de 2008, no Rio de Janeiro)

Fernando Coelho - Dimitri, você se sente um gringo na Bahia?

Dimitri Ganzelevitch - Como cheguei a Bahia beirando os 40, é evidente que nem sempre me adapto a certas "baianices". A sujeira das ruas, a falta de pontualidade, a violência, não me permitem total adequação. E quando menos espero, tem sempre alguém para declarar, "ele nem é daqui!". Mas morar na Bahia foi uma decisão minha e não estou arrependido, muito pelo contrário. Adoro voltar a Europa por quatro ou cinco semanas, mas depois não vejo a hora de voltar.

Fernando Coelho - Conhece o mundo e é um viajante por cidades importantes. O que significa para você, estar sentado nas proximidades da Baía de Todos os Santos?

Dimitri Ganzelevitch - Vivo olhando desde minha varanda, para as águas da baía. Sempre, ou quase sempre, vivi a beira do mar. Embora as referências culturais sejam outras, a Bahia me lembra o Marrocos de minha infância, talvez por sua dimensão espacial, coisa que poucas vezes encontrei na Europa. Como dou, de manhã cedo, comida e bebida para os pássaros, vivo rodeado de aves. É meu (único) lado franciscano.

Fernando Coelho - O patrimônio arquitetônico de Salvador dá inveja a lugares que não tenham tanta riqueza histórica. De que maneira você sente as agressões a essa riqueza baiana?

Dimitri Ganzelevitch - Acho o baiano exagera quando fala "o maior conjunto barroco da América Latina", não é, nem de longe. Comparado a Puebla, Quito, Arequipa, Cusco, Potosi ou até Ayacucho, somos o primo pobre da arte barroca. Mas, como afirmava o historiador Francisco Solano, o que faz nossa singularidade é o belíssimo conjunto de casarios de estilo eclético e seu alegre colorido que nos remete a Lisboa. Moro em Salvador desde minha chegada em maio de 1975. Quatro meses depois de instalado na Rua do Passo, começava a brigar com Deus e o mundo por causa do centro histórico. Acho que nestes 43 anos, nunca parei de brigar, de forma quixotesca, um pouco ridícula, sem o menor êxito a não ser irritar alguns, enquanto outros batem palma... de longe. Neste momento os dois escândalos de vergonhoso abandono são o convento de São Francisco e o Cine-Teatro Jandaia.

Fernando Coelho - Sei que você, juntamente com outras sensibilidades que amam Salvador, sofre muito com o pouco caso do poder público pela cidade. De que maneira isso é ruim para a Bahia?


Dimitri Gasnzelevitch - Com não seria ruim? Acaba com a autoestima de qualquer baiano consciente. Os três níveis - federal, estadual e municipal -, são totalmente omissos, indiferentes. Não têm a menor consciência da importância da memória, nem que seja quanto ao resultado pífio do turismo que a cada ano é mais fraco. Alguém acredita nos números fictícios que nos apresentam as autoridades? Pura fantasia! É só ver o número absurdo dos hotéis que fecham ou são simplesmente abandonados! O Salvador Praia, o Pestana, ex-Meridien, etc.

Houve uma época em que o Pelourinho, de fato, era o coração latente de Salvador. E agora, o que vê nessa área tombada pela UNESCO?


O grande erro do ACM foi usar esta restauração (?) como alavanca política, e não como respeito ao passado da cidade. Havia prostitutas e drogados? Havia, sim. E daí? A diferença com a Pituba e a orla, é que lá as putas são mais finas, menos desdentadas e as drogas são mais para cocaína que para maconha. Naquela época ainda não havia crack.

O IPAC, da bicicleta de Vivaldo Costa Lima/Adriana Castro, passou um rolo compressor sobre o problema social e tratou os edifícios sem o mínimo respeito para as caraterísticas do casario. Todas as portas e janelas foram fabricadas a toque de caixa, todos iguais. A pintura acrílica é um erro fundamental, um crime. Todos os arquitetos envolvidos sabem disso, mas ninguém levanta a voz. Os famigerados shows desestruturam monumentos e o casario com o excesso de decibéis, mas ao se opor, os governantes podem encontrar descontentamentos que irão talvez influir na hora da votação. Então, todos usam e abusam da política da avestruz.

Fernando Coelho - Num momento onde a Bahia tem um dos maiores índices de desemprego do país, não é burrice das autoridades governamentais abandonarem a vocação turística de Salvador?

Dimitri Ganzelevitch- Não se trata só de Salvador, mas de todo o Recôncavo e das ilhas da baía. Temos tesouros que gritam por serem aproveitados, mas nossos governantes são obtusos e analfabetos. Em vez de investir em pontes faraônicas ou viadutos surreais, não seria prioridade recuperar o trem Calçada-São Felix? Restaurar museus e igrejas? Abrir os museus o dia todo incluindo fins de semana e feriados? Alguém já viu UM cartaz da Bahiatursa divulgando nossos museus? Não! Sempre os mesmos chavões que nem impressionam gaúchos ou chineses.

Fernando Coelho - Está explícito que o seu amor por Salvador lhe confere a grandeza de ser um baiano como nós outros. O que sugere para que a nossa cidade volte a ser melhor e mais sedutora para os moradores e os turistas que tanto amam a Bahia?

Dimitri Ganzelevich - Minha sugestão? Exigir de todos nossos políticos - de vereador a governador - a aprender a ler. Nas horas vagas, ir a concertos da Osba – Orquestra Sinfônica da Bahia -, assistir ao nosso teatro, a visitar exposições de arte, de fotografia, tudo de forma espontânea, sem que haja jornalistas contratados para divulgar, pensando nas próximas eleições...

Fernando Coelho - De que maneira o prefeito e o governador devem olhar Salvador, em sua opinião?

Dimitri Ganzelevitch - Com cultura, aquilo que lhes faz tanta falta.

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