Os sefarditas em Israel: o sionismo do ponto de vista das vítimas judaicas
Ella Shohat
Professora de Estudos Culturais da Universidade de Nova York
2004
RESUMO
Este artigo pretende incorporar uma questão pouco mencionada no discurso crítico sobre Israel e o sionismo: a presença dos judeus árabes e orientais, os sefarditas, oriundos em grande parte de países árabes e muçulmanos. Uma análise mais completa deve incluir as conseqüências negativas do sionismo não apenas para o povo palestino, mas também para os judeus sefarditas. A rejeição sionista do Oriente palestino e árabe-muçulmano tem por ilação a rejeição dos mizrahim (os "orientais"), os quais, assim como os palestinos, também tiveram o direito de auto-representação extirpado.
O discurso crítico alternativo sobre Israel e o sionismo tem se voltado, até hoje, para o conflito entre árabes e judeus, e considerado Israel um Estado constituído, aliado ao Ocidente contra o Oriente, e cuja fundação em si teve como premissa a rejeição do Oriente e dos direitos legítimos do povo palestino. Eu gostaria de estender os termos do debate para além das dicotomias mais iniciais (Oriente contra Ocidente, árabes contra judeus, palestinos contra israelenses) e incorporar uma questão suprimida pelas formulações anteriores, qual seja, a presença de uma entidade intermediária: os judeus árabes e orientais, os sefarditas, oriundos em grande parte de países árabes e muçulmanos. Uma análise mais completa, segundo o meu argumento, deve incluir as conseqüências negativas do sionismo não apenas para o povo palestino, mas também para os judeus sefarditas, que, atualmente, constituem a maioria da população judaica em Israel.
O sionismo não apenas assume a posição de porta-voz da Palestina e dos palestinos, "bloqueando", assim, toda possibilidade de auto-representação palestina, como também pressupõe falar em nome dos judeus orientais. Logo, a rejeição sionista do Oriente palestino e árabe-muçulmano tem por ilação a rejeição dos mizrahim (os "orientais"), os quais, assim como os palestinos, embora por meio de mecanismos mais sutis e de brutalidade menos óbvia, também tiveram o direito de auto-representação extirpado.
Em Israel, e no cenário mundial, a voz hegemônica é aquela dos judeus ocidentais, os asquenazes, ao passo que a dos sefarditas tem sido em grande escala abafada ou silenciada.
O sionismo alega ser um movimento de libertação de todos os judeus, e os ideólogos sionistas não pouparam esforços para tornar os termos "judeu" e "sionista" quase sinônimos.
Contudo, o sionismo foi na verdade um movimento de libertação (como sabemos, problemático) dos judeus europeus e, de forma mais específica, de uma pequena parcela estabelecida em Israel. Embora o sionismo alegue oferecer uma pátria a todos os judeus, essa pátria não está aberta a todos com a mesma largueza.
Os judeus sefarditas foram levados pela primeira vez a Israel por motivos sionista-europeus específicos, e, desde que chegaram lá, foram sistematicamente discriminados por um sionismo que destinava desigualmente esforços e recursos materiais, sempre favorecendo os judeus europeus e preterindo os orientais.
Neste ensaio, gostaria de delinear a situação de opressão estrutural sofrida pelos judeus sefarditas em Israel, remontar brevemente às origens históricas dessa opressão e sugerir uma análise sintomática dos discursos (historiográfico, sociológico, político e jornalístico) que sublimam, mascaram e perpetuam essa opressão.
Superposta à problemática entre Oriente e Ocidente está associada uma outra questão, diferente em vários aspectos, que é a da relação entre o "Primeiro" e o "Terceiro" Mundos. Apesar de não ser um país terceiro-mundista, qualquer que seja o critério empregado, simples ou convencional, Israel tem afinidades e analogias estruturais com o Terceiro Mundo, semelhanças que muitas vezes passam despercebidas até mesmo, e talvez sobretudo, em Israel. Assim, em que sentido Israel, malgrado as visões de seus porta-vozes oficiais, pode ser considerado portador de atributos comuns ao Terceiro Mundo?
Em primeiro lugar, em termos puramente demográficos, a maioria da população israelense define-se como terceiro-mundista ou, pelo menos, oriunda do Terceiro Mundo. Os palestinos perfazem cerca de 20% da população, ao passo que os sefarditas, cuja maioria provém, em um passado muito recente, de países como Marrocos, Argélia, Egito, Iraque, Irã e Índia, comumente classificados como de Terceiro Mundo, constituem mais de 50% da população, ou seja, 70% da população são do Terceiro Mundo ou dele provenientes (cifra que chega a quase 90% se Cisjordânia e Gaza forem incluídos).
A hegemonia européia no país, nesse sentido, é fruto de uma minoria numérica distinta, interessada em minimizar os traços distintivos do Oriente e do Terceiro Mundo de Israel.
Em Israel, os judeus europeus formam uma elite de Primeiro Mundo que domina não somente os palestinos, mas também os judeus orientais. Os sefarditas, porque são um povo judaico de Terceiro Mundo, formam uma nação semicolonizada dentro de outra nação.
A minha análise é, de forma geral, tributária do discurso anticolonialista (Frantz Fanon, Aimé Césaire) e, de forma específica, da contribuição indispensável de Edward Said, da sua crítica genealógica do orientalismo como formação discursiva pela qual a cultura européia pôde administrar (e até mesmo produzir) o Oriente durante o período pós-Iluminismo.
A postura orientalista pressupõe o Oriente como uma constelação de atributos, conferindo valores generalizados a diferenças reais ou imaginárias que na maioria das vezes beneficiam o Ocidente em detrimento do Oriente, para justificar as prerrogativas e agressões daquele sobre este. O orientalismo tende a manter o que Said chama de "superioridade posicional flexível", que coloca o ocidental em uma gama completa de relações possíveis com o oriental, nas quais o ocidental, todavia, nunca perde a sua posição de supremacia. Este ensaio, portanto, aborda o processo pelo qual uma das extremidades da dicotomia Ocidente-Oriente é produzida e reproduzida como racional, desenvolvida, superior e humana, enquanto a outra é aberrante, subdesenvolvida e inferior, porém, neste caso, também em que medida isso afeta os judeus orientais.
A NARRATIVA-MESTRE SIONISTA
Considerar os sefarditas uma população de Terceiro Mundo oprimida contrapõe-se frontalmente ao núcleo do discurso dominante em Israel e repercutido pela mídia ocidental fora do país. Segundo tal discurso, o sionismo europeu "salvou" os judeus sefarditas do jugo implacável dos seus "captores" árabes. Eles teriam sido retirados de "condições primitivas" de pobreza e superstição, e conduzidos gentilmente para uma sociedade ocidental moderna, caracterizada pela tolerância, democracia e "valores humanos", com os quais tinham apenas uma vaga familiaridade involuntária, pois originavam-se de "ambientes levantinos". Uma vez em Israel, claro, os sefarditas tiveram de defrontar-se com o problema da "lacuna", não apenas a que existia entre o seu padrão de vida e o dos judeus europeus, como também a evidenciada pela sua "integração defasada" ao liberalismo e à prosperidade israelenses, deficientes que eram pela formação recebida nas terras de origem: oriental, inculta, despótica, sexista e pré-moderna em termos gerais, sem contar a propensão à constituição de famílias numerosas.
Felizmente, contudo, o sistema político, as instituições para o bem-estar e o sistema educacional envidaram todos os esforços possíveis para "reduzir esta lacuna", iniciando os judeus orientais nos caminhos de uma sociedade moderna e civilizada. Também felizmente, os inter casamentos estão acontecendo em ritmo acelerado e os sefarditas passaram a ser percebidos de forma positiva graças aos seus "valores culturais tradicionais", música folclórica, rica cozinha e hospitalidade acolhedora. No entanto, um problema grave persiste. Por causa da educação inadequada e da "falta de experiência com a democracia", os judeus da Ásia e da África tendem a ser muito conservadores, reacionários até, além de religiosos fanáticos, em contraste com os judeus europeus, que são liberais, seculares e cultos.
Anti-socialistas, os sefarditas formam a base do apoio a partidos de direita. Além disso, em razão da "experiência cruel em terras árabes", eles tendem a ter "ódio aos árabes" e, nesse sentido, são um "obstáculo à paz", pois impossibilitam os esforços do "campo de paz" para o estabelecimento de um "acordo razoável" com os árabes.
Em breve discutirei a falsidade fundamental desse discurso, mas antes gostaria de comentar a sua ampla difusão, pois trata-se de um discurso partilhado pela direita e pela "esquerda", e que tem versões iniciais e tardias, religiosas e seculares. A elite israelense preparou uma ideologia para culpar os sefarditas (e os seus países de origem do Terceiro Mundo) que é difundida por políticos, cientistas sociais, educadores, escritores e a grande mídia. Essa ideologia rege uma série de discursos preconceituosos articulados, de claras conotações colonialistas. Não é surpresa, portanto, que nesse contexto a elite compare os sefarditas a outras populações colonizadas "inferiores". Referindo-se aos sefarditas em um artigo de 1949, durante a imigração em massa de países árabes e muçulmanos, o jornalista Arye Gelblum escreveu:
Esta é uma imigração racial sem precedentes no país [...] Estamos lidando com gente cujo primitivismo chegou ao ápice, cujo grau de conhecimento é praticamente a ignorância absoluta, e, pior, com pouco talento para compreender qualquer coisa que seja intelectual. Em termos gerais, eles são ligeiramente superiores à média dos árabes, negros e berberes das mesmas regiões. De qualquer forma, são inferiores até mesmo ao que percebemos dos primeiros árabes da Eretz Israel [...] A esses judeus também faltam raízes no judaísmo, uma vez que estão totalmente sujeitados aos arbítrios de instintos selvagens e primitivos [...] Assim como os africanos, jogam cartas a dinheiro, bebem e prostituem-se. A maioria deles tem graves doenças oculares, sexuais e de pele, sem mencionar os roubos e furtos. Indolência crônica e aversão ao trabalho, nada se salva neste elemento associal [...] A "Aliyat HaNaar" [a organização oficial responsável por imigrantes jovens] recusa-se a receber crianças marroquinas e os kibutzim não querem nem ouvir falar em recebê-los3.
O artigo é concluído com a citação do conselho de amigo de um diplomata e sociólogo francês, que evidencia o paralelo colonial presente nas atitudes asquenazes direcionadas aos sefarditas. O diplomata, baseando-se na experiência francesa com as colônias africanas, adverte:
Vocês estão cometendo, em Israel, o mesmo erro fatal cometido por nós, franceses. [...] Estão abrindo demais as portas para a África [...] a imigração de um certo tipo de material humano irá degradá-los e transformá-los em um Estado levantino, e então o seu destino estará selado. Vocês se deteriorarão e se perderão4.
Para que não se pense que esse discurso seja produto do delírio de um jornalista isolado e retrógrado, basta citar o primeiro-ministro David Ben Gurion, que descreveu os imigrantes sefarditas como privados "dos conhecimentos mais elementares" e "sem traço algum de educação judaica ou humana"5. Ben Gurion várias vezes expressou desprezo pela cultura dos judeus orientais: "Não queremos que os israelenses tornem-se árabes. Temos o dever de lutar contra o espírito do Levante, que corrompe indivíduos e sociedades, e preservar os valores judaicos autênticos, da forma como foram cristalizados na Diáspora".
Durante os anos subseqüentes, os líderes israelenses constantemente reforçaram e legitimaram esses preconceitos, que englobavam árabes e judeus orientais. Para Abba Eban, o "objetivo deve ser infundir [nos sefarditas] o espírito ocidental, e não permitir que eles nos arrastem para um orientalismo não natural". Ou, mais uma vez: "Um dos grandes temores que nos afligem [...] é o perigo de a predominância dos imigrantes de origem oriental forçar Israel a igualar o seu nível cultural ao do mundo vizinho" Golda Meir projetou os sefarditas, aos moldes colonialistas típicos, como oriundos de um outro tempo, menos desenvolvido, que, para ela, equivalia ao século XVI (e, para outros, a uma "Idade Média" vagamente determinada): "Seremos capazes", perguntou ela, "de elevar esses imigrantes até um nível adequado de civilização?".
Ben Gurion, que se referiu aos judeus marroquinos como "selvagens" durante uma sessão do Knesset, e que comparou os sefarditas, de forma pejorativa (e reveladora), aos negros levados para os Estados Unidos como escravos, às vezes chega até a questionar a capacidade espiritual e mesmo a judaicidade dos sefarditas. Em um artigo intitulado "A glória de Israel", publicado no Anuário do Governo, o primeiro-ministro lamentou que "a presença divina havia desaparecido dos grupos étnicos de judeus orientais", ao passo que louvava os judeus europeus por terem "liderado o nosso povo em termos qualitativos e quantitativos".
Os escritos e discursos sionistas freqüentemente expressam a idéia (questionável do ponto de vista historiográfico) de que os judeus do Oriente, antes do seu "retorno" a Israel, estavam de algum modo "fora da" história, portanto, ecoando de forma irônica avaliações do século XIX, como as de Hegel, de que os judeus, como os negros, viviam à margem da civilização ocidental. Os sionistas europeus, nesse sentido, assemelham-se ao colonizador de Fanon, que sempre "faz a história", e cuja vida é "uma época", "uma odisseia" na qual os nativos compõem um "pano de fundo quase inorgânico".
Mais uma vez, no início dos anos 1950, alguns dos mais celebrados intelectuais israelenses, da Universidade Hebraica de Jerusalém, escreveram ensaios que abordavam o "problema étnico". "Temos de reconhecer", escreveu Karl Frankenstein, "a mentalidade primitiva de muitos desses imigrantes de países retrógrados", sugerindo que essa mentalidade poderia ser comparada, de forma produtiva, "à expressão primitiva de crianças, e de indivíduos com atraso ou distúrbios mentais." Outro acadêmico, Yosef Gross, considerava que os imigrantes sofriam de "regressão mental" e "falta de desenvolvimento do ego". O abrangente simpósio sobre o "problema sefardita" foi delineado na forma de um debate acerca da "essência do primitivismo". Apenas uma intensa instilação de valores culturais europeus, concluíram os acadêmicos, poderia resgatar os judeus árabes de seu "estado de atraso". E, em 1964, Kalman Katznelson publicou seu livro racista The Ashkenazi revolution, no qual protesta contra os perigos representados pela admissão em Israel de um grande número de judeus orientais, utiliza como argumento a inferioridade genética, fundamental e irreversível dos sefarditas, expressa o receio da contaminação da raça asquenaze por casamentos mistos e exorta os asquenazes a protegerem os próprios interesses de uma maioria sefardita em expansão.
Essas atitudes não desapareceram, ao contrário, ainda vigoram e são expressas por judeus europeus das mais diversas orientações políticas. A "liberal" Shulamit Aloni, líder do partido do Movimento pelos Direitos Civis e membro do Knesset, acusou, em 1983, manifestantes sefarditas de serem "forças tribais bárbaras", "conduzidas como um rebanho ao som de tambores" e que cantavam como "uma tribo selvagem". As imagens implícitas que comparam os sefarditas a africanos negros retomam, ironicamente, um dos tópicos favoritos do anti-semitismo europeu, o do "judeu negro" (nas conversas entre judeus europeus, os sefarditas são às vezes chamados de "schwartze-chaies" ou "animais negros").
Por sua vez, Amnon Dankner, colunista do diário "liberal" HaAretz, favorito entre os intelectuais asquenazes e reconhecido pelos seus supostamente altos padrões jornalísticos, vilipendiou os atributos sefarditas, associando-os a uma cultura islâmica, claramente inferior à cultura ocidental que "estamos tentando adotar aqui". Apresentando-se como vítima angustiada de uma alegada "tolerância" oficial, o jornalista lamuria a convivência forçada com subumanos orientais:
Esta guerra [entre os asquenazes e os sefarditas] não será entre irmãos, não porque não haverá guerra, mas porque não há irmãos. Porque, se eu tiver de fazer parte dessa guerra, que está sendo imposta a mim, recuso-me a chamar o outro lado de irmão. Eles não são meus irmãos, não são minhas irmãs, deixem-me em paz, eu não tenho irmã [...] Eles colocam o manto pegajoso do amor a Israel sobre a minha cabeça e pedem para eu ser condescendente quanto às deficiências culturais dos sentimentos legítimos de discriminação [...] eles me colocam em uma jaula com um babuíno histérico e dizem: "Pronto, agora vocês estão juntos, podem começar o diálogo". E eu não tenho escolha. O babuíno está contra mim, o guarda está contra mim, e os profetas do amor de Israel ficam de lado e dão uma piscadela perspicaz para mim, que significa: "Fale direito com ele. Jogue uma banana para ele. Afinal de contas, vocês são irmãos [...]".
Mais uma vez nos vem à mente o colonizador de Fanon, incapaz de falar sobre o colonizado sem recorrer ao bestiário, o colonizador que utiliza termos zoológicos.
Contudo, o discurso racista a respeito dos judeus orientais nem sempre é tão desvairado ou violento. Em outras instâncias, assume uma forma "humana" e relativamente "benigna". Peguemos, por exemplo, One people: the story of the eastern Jews, da doutora Dvora e do rabino Menachem Hacohen, um texto "afetuoso", e impregnado de preconceitos eurocêntricos.
Na introdução, Abba Eban fala da "qualidade exótica" das comunidades judaicas "das margens externas do mundo judaico". O texto em si, e as fotografias que o acompanham, trazem uma clara agenda ideológica. A ênfase é sempre colocada na "vestimenta tradicional", nos "modos populares cativantes", nos "ofícios" pré-modernos de sapateiros e artesãos de objetos de cobre, e nas mulheres que "tecem com teares primitivos". Somos informados de que há uma "falta de livros didáticos no Iêmen" e os registros fotográficos mostram apenas escritos em ketubahs ou em estojos de Torá, mas nenhuma literatura secular. Somos lembrados, repetidamente, de que alguns judeus norte-africanos viviam em cavernas (intelectuais como Albert Memmi e Jacques Derrida aparentemente escaparam dessa condição) e um capítulo inteiro é dedicado aos "judeus que moravam em cavernas".
O registro histórico verdadeiro, todavia, revela que a maioria absoluta dos judeus orientais era urbana. Não há, é óbvio, nenhum mérito intrínseco em ser urbano ou falha implícita em optar por viver "em cavernas". O que surpreende, no comentador, é uma espécie de "desejo por primitivismo", um miserabilismo que o compele a pintar os judeus sefarditas como inocentes em termos de tecnologia e modernidade. Em seguida, as imagens da miséria oriental são contrastadas com as faces luminosas dos orientais em Israel, aprendendo a ler e a dominar a tecnologia moderna de tratores e colheitadeiras. O livro faz parte de um amplo setor de exportação nacional do "folclore" sefardita, um mercado que faz circular artigos muitas vezes expropriados (como vestidos, jóias, objetos litúrgicos, livros, fotos e filmes) entre as instituições judaicas ocidentais, ávidas pelo exoticismo judaico.
Nesse sentido, os asquenazes israelenses glosam o enigma dos judeus orientais para os ocidentais (um padrão comum também nos estudos acadêmicos). The Israeli film: social and cultural influences, 1912-1973, de Ora Gloria Jacob Arzooni, por exemplo, descreve a "exótica" comunidade sefardita de Israel como infestada por "doenças tropicais quase desconhecidas" (o dado geográfico aqui é um tanto imaginativo) e "praticamente indigente". Os judeus norte-africanos, segundo somos informados por meio de uma linguagem que surpreende, dada a distância da queda do Terceiro Reich, dificilmente eram "puros em termos raciais" e, entre eles, encontravam-se "bruxarias e outras superstições abolidas há muito tempo em qualquer lei judaica". Lembremo-nos do relato irônico que Fanon faz das descrições colonialistas dos nativos: "criaturas torpes, consumidas por febres, obcecadas por costumes ancestrais".
O ROUBO DA HISTÓRIA
Um característica essencial do colonialismo é a distorção e até mesmo a negação da história do colonizado. A projeção dos sefarditas como provenientes de sociedades rurais retrógradas, sem nenhum contato com a civilização tecnológica, é, na melhor das hipóteses, uma caricatura simplista e, na pior, uma fraude completa. Metrópoles como Alexandria, Bagdá e Istambul, à época da emigração sefardita, estavam longe de ser áreas isoladas e abandonadas, sem eletricidade e automóveis, como indicam os relatos sionistas oficiais; tampouco essas terras foram, por alguma razão inexplicável, excluídas da dinâmica universal dos processos históricos.
Mesmo assim, as crianças sefarditas e palestinas, nas escolas israelenses, são obrigadas a estudar uma história do mundo que a um só tempo privilegia as realizações ocidentais e apaga as civilizações do Oriente. Além disso, as dinâmicas das políticas do Oriente Médio são apresentadas apenas em relação à influência fecundante do sionismo no que anteriormente era um deserto. Na narrativa mestre sionista há pouco espaço para palestinos e sefarditas, mas, enquanto os palestinos possuem uma contra-narrativa clara, a história sefardita é fraturada e embutida na história de ambos os grupos. Ao distinguir o Oriente "diabólico" (árabe-muçulmano) do Oriente "angelical" (árabe-judaico), Israel assumiu a tarefa de "purgar" a "arabidade" dos sefarditas e redimi-los do "pecado original" de pertencer ao Oriente.
A historiografia israelense dispersa os judeus asiáticos e africanos nos judeus europeus da memória oficial monolítica. Os estudantes sefarditas não aprendem quase nada sobre o valor da sua história específica como judeus do Oriente. Assim como as crianças senegalesas e vietnamitas aprenderam que os seus "ancestrais, os gauleses, eram loiros de olhos azuis", as crianças sefarditas são inoculadas com a memória histórica dos "nossos ancestrais, os residentes dos shtetls da Polônia e da Rússia", bem como com o orgulho dos Pais Fundadores sionistas pelo assentamento de postos avançados pioneiros em uma região selvagem. A história judaica é concebida como primordialmente européia, e o silêncio dos textos históricos a respeito dos sefarditas constitui uma forma polida de ocultar a presença desconcertante de um "outro" oriental, subordinado a um "nós" judaico-europeu.
Da perspectiva do sionismo oficial, os judeus de países árabes e muçulmanos aparecem na cena mundial apenas quando são vistos no mapa do Estado Hebreu, da mesma forma que a história moderna da Palestina é vista como tendo começado com a renovação sionista do mandato bíblico. Presume-se, portanto, que a história sefardita moderna tenha início com a chegada dos judeus sefarditas a Israel e, mais precisamente, com as operações "tapete mágico" e "Ali Babá" (a primeira refere-se à transferência dos judeus iemenitas para Israel, em 1949-50, e a segunda, dos judeus iraquianos, em 1950-51). Os nomes em si, retirados de As mil e uma noites, já evocam atitudes orientalistas por colocar em primeiro plano a religiosidade ingênua e o atraso tecnológico dos sefarditas, para quem os aviões modernos eram "tapetes mágicos" que os transportavam até a Terra Prometida.
A glosa sionista para a alegoria do Êxodo, então, enfatizou a escravidão "egípcia" (e Egito, aqui, é uma sinédoque de todo o território árabe) e a morte benéfica da "geração do deserto" (os sefarditas). O sionismo europeu assumiu o papel de patriarca na tradição oral judaica da passagem da experiência de seus povos de pais para filhos ("vehigadeta lebincha bayom hahu"). E as histórias do pai sionista asfixiou os pais sefarditas, cujas histórias ficaram inacessíveis aos seus filhos.
Filtrado por uma rede eurocêntrica, o discurso sionista apresenta a cultura como monopólio do Ocidente, destituindo os povos da Ásia e da África, incluindo os judaicos, de toda e qualquer expressão cultural. A rica cultura dos judeus de países árabes e muçulmanos é parcamente estudada nas escolas e instituições acadêmicas israelenses. Enquanto o iídiche é valorizado e recebe subsídios oficiais, o ladino e outros dialetos sefarditas são negligenciados: "Aqueles que não falam iídiche", disse uma vez Golda Meir, "não são judeus". O iídiche, por uma ironia da história, tornou-se, para os sefarditas, o idioma do opressor, um discurso codificado associado ao privilégio.
Enquanto os trabalhos de Sholem Aleicham, Y. D. Berkowitz e Mendele Mocher Sfarim são analisados em detalhe, as obras de Anwar Shaul, Murad Michael e Salim Darwish são ignoradas, e, quando os personagens sefarditas são discutidos, seus atributos árabes são detraídos. Maimônides, Yehuda HaLevi e Iben Gabirol são vistos como frutos de uma tradição judaica descontextualizada, da Espanha (ou seja, da Europa), em vez de, como até mesmo reconhece o orientalista Bernard Lewis, uma "simbiose judaico-islâmica".
Tudo conspira para cultivar a impressão de que a cultura sefardita anterior ao sionismo era estática e passiva, e, como a terra de pousio da Palestina, descansava à espera da inoculação impregnante do dinamismo europeu. Muito embora, para ajudar a montar uma imagem de opressão e humilhação incessantes, a historiografia sionista acerca dos sefarditas consista em uma mórbida seleção que segue uma linha tracejada de um pogrom a outro (muitas vezes separados por séculos), a verdade é que os sefarditas, como um todo, viveram com bastante conforto na sociedade árabe-muçulmana.
A história deles simplesmente não pode ser discutida com a terminologia judaico-européia. Até mesmo a palavra "pogrom" deriva dessa terminologia e ecoa as especificidades da experiência judaico-européia. Ao mesmo tempo, não devemos idealizar o relacionamento entre judeus e muçulmanos como idílico. É verdade que a propaganda sionista exagerou nos aspectos negativos da situação judaica nos países muçulmanos, bem como é verdade que a situação desses judeus durante quinze séculos foi inquestionavelmente melhor que a dos judeus nos países cristãos.
Contudo, é fato que o status de dhimmi concedido a judeus e cristãos, ou seja, de minorias "toleradas" e "protegidas", era intrinsecamente desigual. Porém, esse fato, como observa Maxime Rodinson, era bastante justificável pelas condições históricas e sociológicas da época, e não produto de um anti-semitismo patológico de estilo europeu. As comunidades sefarditas, apesar de preservarem uma forte identidade coletiva, eram em geral bem integradas e autóctones em seus países de origem, eram partes inseparáveis da sua vida social e cultural.
Com tradições totalmente influenciadas pela cultura árabe, os judeus iraquianos, por exemplo, usavam o árabe em seus cânticos e cerimônias religiosas. As tendências liberais e seculares do século XX engendraram uma associação ainda mais forte entre os judeus iraquianos e a cultura árabe, e permitiram que os judeus alcançassem postos de destaque nas esferas pública e cultural. Escritores, poetas e acadêmicos judeus desempenharam papéis vitais na cultura árabe, por exemplo, traduzindo livros de outros idiomas.
Os judeus distinguiram-se no teatro iraquiano de língua árabe, e também na música, como cantores, compositores e músicos de instrumentos tradicionais. No Egito, na Síria, no Líbano, no Iraque e na Tunísia, tornaram-se membros do legislativo, de conselhos municipais, do judiciário, e chegaram a ocupar posições financeiras de destaque. O ministro da Fazenda do Iraque, na década de 1940, era Ishak Sasson, e, no Egito, Jamas Sanua — ironicamente, posições mais altas do que as alcançadas pelos sefarditas no Estado judeu.
THE LURE OF ZION
A historiografia sionista apresenta a emigração dos judeus árabes como resultado de uma longa história de anti-semitismo e de devoção religiosa, ao passo que os ativistas sionistas das comunidades árabe-judaicas sublinham a importância do compromisso ideológico sionista como motivação para o êxodo.
Ambas as versões omitem elementos cruciais: o interesse econômico sionista na transferência dos sefarditas para a Palestina e Israel, o interesse financeiro de regimes árabes específicos na saída deles, os eventos históricos no despontar do conflito entre árabes e judeus, e também a conexão fundamental entre o destino dos judeus árabes e o dos palestinos. Os historiadores árabes, como observa Abbas Shiblak em The lure of Zion, também subestimaram o quanto as políticas dos governos árabes de estímulo à saída de judeus agiam contra si mesmas, pois eram ironicamente úteis à causa sionista e prejudiciais a judeus árabes e palestinos.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que os sefarditas, que haviam vivido no Oriente Médio e no Norte da África durante milênios (em muitos casos até mesmo antes da conquista árabe), simplesmente não queriam assentar-se na Palestina e tiveram de ser "seduzidos" para chegar ao Sião. Apesar da mística messiânica da Terra de Sião, que era parte integrante da cultura religiosa sefardita, não havia o desejo sionista-europeu de "encerrar a diáspora" pela criação de um Estado independente, povoado por um novo arquétipo de judeu.
Os sefarditas sempre estiveram em contato com a "terra prometida", mas esse contato constituía uma parte "natural" da circulação geral nos países do Império Otomano. Por toda a década de 1930 não eram incomuns peregrinações puramente religiosas ou viagens de negócios de sefarditas para a Palestina, às vezes com a ajuda de empresas de transporte pertencentes a judeus (embora a mentalidade geográfica sionista projetasse as terras de origem dos sefarditas como "remotas e distantes", na verdade eram, obviamente, mais próximas da Eretz Israel que a Polônia, a Rússia e a Alemanha).
Antes do Holocausto e da fundação de Israel, o sionismo havia sido um movimento de minorias no mundo judaico. A maioria dos judeus sefarditas era indiferente ou, às vezes, até mesmo hostil ao projeto sionista. A liderança judaica iraquiana, por exemplo, cooperou com o governo do Iraque para a interrupção das atividades sionistas naquele país. O rabino chefe do Iraque chegou a publicar uma "carta aberta" em 1929, na qual denunciava o sionismo e a Declaração de Balfour.
Na Palestina, alguns líderes da comunidade judaica local (sefardita) fizeram protestos formais contra os planos sionistas. Em 1920, eles assinaram uma petição anti-sionista organizada por árabes palestinos e, em 1923, alguns judeus palestinos reuniram-se em uma sinagoga para denunciar o jugo asquenaze-sionista (alguns até mesmo saudaram o Comitê Muçulmano-Cristão e o seu líder Mussa Chasam al-Chuseini), um evento cuja publicação nos jornais foi impedida pelo Comitê Judaico Nacional.
O sionismo, nesse período, criou dilemas ideológicos igualmente dilacerantes para as comunidades palestinas judaicas, muçulmanas e cristãs. O movimento árabe nacional na Palestina e na Síria diferenciava cuidadosamente, nos primeiros estágios, os imigrantes sionistas dos habitantes judeus locais (na maioria sefarditas), "que viviam em paz entre os árabes". A primeira petição de protesto contra o sionismo feita pelos árabes de Jerusalém afirmava, em novembro de 1918: "Queremos viver [...] em igualdade com os nossos irmãos israelitas, nativos e há muito tempo neste país; os seus direitos são os nossos direitos e os seus deveres, também os nossos".
A Conferência Geral dos Povos Sírios, em julho de 1919, que contou com a participação de um representante sefardita, chegou mesmo a reivindicar a representação de todos os sírios, muçulmanos, cristãos e judeus árabes.
O manifesto da primeira convenção palestina, em fevereiro de 1919, também insistiu na distinção entre sionistas e judeus locais e mesmo em março de 1920, durante as imensas manifestações contra a Declaração de Balfour, a petição da área de Nazaré voltou-se apenas contra a imigração sionista, e não contra os judeus como um todo: "Os judeus são pessoas do nosso país, que vivem conosco desde antes da ocupação, eles eram nossos irmãos, pessoas do nosso país, e todos os judeus do mundo são nossos irmãos".
Ao mesmo tempo, havia ambivalências e temores reais tanto por parte dos judeus árabes quanto dos cristãos e muçulmanos árabes. Enquanto alguns árabes muçulmanos e cristãos mantinham uma distinção rigorosa entre sionistas e judeus, outros eram menos cautelosos. Em Nazaré, o padre anglicano palestino da cidade estabeleceu argumentos teológicos contra "os judeus" em geral, ao passo que os tumultos árabes em 1920, e mais uma vez em 1929, não faziam distinção entre alvos sionistas em si e as comunidades tradicionais, que praticamente não estavam envolvidas no projeto sionista.
Portanto, o sionismo instalou um doloroso binarismo no que era antes um relacionamento pacífico entre duas comunidades. O judeu sefardita foi forçado a optar entre uma "arabidade" anti-sionista e uma "judaicidade" pró-sionista. Pela primeira vez na história sefardita, "arabidade" e "judaicidade" foram definidos como antônimos. Nesse ínterim, a situação levou os árabes palestinos a, no mínimo, considerar todos os judeus sionistas em potencial. Com a pressão das ondas de imigração de asquenazes sionistas e o intumescimento do poder de suas instituições, a distinção entre judeus e sionistas tornava-se cada vez mais precária, o que favorecia muito o sionismo europeu. Se o movimento nacionalista árabe tivesse mantido essa distinção, como até mesmo reconheceu o historiador sionista Yehoshua Porath, teria havido chances significativas de obter o apoio sefardita para a causa anti-sionista.
Para o sionismo, enquanto isso, não era uma tarefa fácil desarraigar as comunidades árabe-judaicas externas à Palestina. No Iraque, por exemplo, apesar da Declaração de Balfour em 1917, das tensões geradas pelos embates entre palestinos e sionistas na Palestina, da propaganda sionista entre os judeus sefarditas nos territórios árabe-muçulmanos, dos ataques historicamente atípicos aos judeus iraquianos em 1941 (ataques indissociáveis dos conflitos geopolíticos da época), e mesmo após a proclamação do Estado israelense, a maioria dos judeus árabes não era sionista e permaneceu relutante em emigrar. Mesmo depois da fundação do Estado, a comunidade judaica no Iraque estava construindo novas escolas e realizando outros empreendimentos: uma clara evidência de intenção institucionalizada de ficar.
Quando o governo iraquiano anunciou, em 1950, que todos os judeus que quisessem sair eram livres para fazê-lo, desde que renunciassem à sua cidadania e às suas propriedades, e determinou um limite de tempo para o êxodo, somente algumas famílias requereram vistos de saída. Então, como a cenoura não fora suficientemente apetitosa, foi preciso usar uma vareta. Uma célula judaica clandestina, comandada por agentes secretos enviados por Israel, explodiu bombas em centros judaicos, para criar histeria entre os judeus iraquianos e, assim, desencadear o êxodo em massa para Israel31. Em uma das ocasiões, em 14 de janeiro de 1951, uma bomba foi lançada ao pátio da sinagoga de Mas'ouda Shemtob, em Bagdá, onde centenas de pessoas estavam reunidas.
O saldo foi de quatro mortos, incluindo um garoto de doze anos, e mais duas dezenas de feridos. Aparentemente, essas ações eram fruto do choque entre dois grupos, os sionistas israelenses (incluindo um pequeno grupo de sionistas iraquianos) e facções do governo iraquiano (principalmente o dirigente Nuri Said, que seguia orientações britânicas), que estavam sendo pressionadas pela campanha internacional de denúncia liderada por sionistas e que tinham interesse financeiro imediato na expulsão dos judeus iraquianos. Sem ter como escapar da colaboração inescrupulosa entre os sionistas e o governo iraquiano, a comunidade sefardita entrou em pânico e foi forçada a sair. O "sionismo cruel", como os próprios proponentes o intitulavam (ou seja, a noção de que os sionistas tinham de utilizar meios violentos para arrancar os judeus do exílio) tinha alcançado os seus objetivos.
O mesmo processo histórico que despojou os palestinos das suas propriedades, terras e direitos político-nacionais estava vinculado à destituição de propriedades, terras e raízes dos sefarditas nos países árabes (e, em Israel, da sua história e cultura). O projeto como um todo havia sido cinicamente idealizado nos pronunciamentos diplomáticos de Israel na forma de um "intercâmbio populacional espontâneo" e uma justificativa para a expulsão dos palestinos. Porém, a simetria é ilusória: o assim chamado "retorno do exílio" dos judeus árabes nem de longe era espontâneo e, de qualquer forma, não pode ser equacionado com a condição dos palestinos, que haviam sido exilados da sua terra natal e queriam voltar para lá. Mesmo em Israel, enquanto os palestinos eram forçados a sair, os sefarditas sofriam um trauma complementar, uma espécie de imagem em negativo, da experiência palestina.
Os vulneráveis novos imigrantes recebiam ordens de oficiais arrogantes, que os chamavam de "sujeira humana", e eram atulhados nos ma'abarot (campos provisórios), em abrigos de zinco construídos às pressas. Muitos foram destituídos dos seus nomes árabes, persas e turcos "impronunciáveis" e equipados com nomes "judaicos" por burocratas israelenses com poderes quase divinos. O processo de aniquilamento do orgulho milenar, da criatividade e da autoconfiança coletivas também foi uma inovação. Tratava-se de uma espécie de "passagem intermediária" dos sefarditas, onde a fachada do "retorno do exílio" voluntário encobria uma gama sutil de coerções.
Contudo, enquanto os palestinos foram autorizados a alimentar a militância coletiva da nostalgia no exílio (fosse com um passaporte de Israel, da Síria, do Kuait ou com um passe livre), os sefarditas foram obrigados pela situação sem saída a reprimir a nostalgia comunitária. A penetrante noção de "um povo" reunificado na terra natal dos seus ancestrais desautorizou de forma enérgica quaisquer memórias afetivas da vida anterior ao Estado de Israel.
"TRABALHO HEBREU": MITO E REALIDADE
O "retorno dos quatro cantos do planeta" promovido pelos sionistas nunca foi a iniciativa benevolente retratada pelo discurso oficial. Desde os primórdios do sionismo, os sefarditas eram tidos como uma fonte de mão-de-obra barata que devia ser "manobrada" para emigrar da Palestina. A estrutura econômica que oprime os sefarditas em Israel foi estabelecida desde os primeiros dias do Yishuv (assentamento sionista pré-estatal na Palestina). Entre as diretrizes do sionismo socialista, por exemplo, estavam as noções casadas de Avoda Ivrit (trabalho hebreu) e Avoda Atzmit (trabalho autônomo), sugerindo que uma pessoa (e uma comunidade) deveria ganhar dinheiro por conta própria e não por meio do trabalho para terceiros, uma idéia cujas origens remontam ao Haskalah, ou Iluminismo Hebraico, no século XVIII.
Muitos pensadores, escritores e poetas judeus, como Mapu, Brenner, Borochov, Gordon e Katzenelson, enfatizaram a necessidade de transformar os judeus pelo "trabalho produtivo", em particular o trabalho na agricultura. Esses pensadores propuseram o Avoda Ivrit como precondição necessária para a recuperação judaica. As normas e a prática do Avoda Ivrit afetaram profundamente a auto-imagem histórica positiva dos pioneiros hebreus e, subseqüentemente, dos israelenses envolvidos em uma iniciativa não-colonialista, que, ao contrário da Europa colonialista, não explorou os "nativos" e foi, portanto, percebida como detentora de aspirações superiores em termos morais.
No entanto, as implicações históricas reais do Avoda Ivrit foram trágicas por terem engendrado tensões políticas não apenas entre árabes e judeus, mas também entre sefarditas e asquenazes, e entre sefarditas e palestinos. A princípio, os colonos judeus europeus tentaram competir com os trabalhadores árabes por oportunidades oferecidas por empregadores judeus já assentados: o "trabalho judeu", portanto, significava na verdade boicotar o trabalho árabe. Contudo, as demandas dos imigrantes por salários relativamente altos inviabilizou a sua contratação, causando, assim, a emigração de uma proporção significativa deles. Na época, como até mesmo os judeus russos mais pobres estavam indo para as Américas, não era fácil convencer os judeus europeus a irem para a Palestina.
Foi somente depois do fracasso da imigração asquenaze que as instituições sionistas decidiram levar os sefarditas. Ya'acov Tehon, do Gabinete da Eretz Israel, escreveu em 1908 sobre esse problema de "trabalhadores hebreus". Após detalhar os obstáculos econômicos e psicológicos às metas do Avoda Ivrit, bem como os perigos implicados no emprego em massa de árabes, ele propôs, junto a outros representantes oficiais sionistas, a importação de sefarditas para "substituir" os trabalhadores agrícolas árabes. Como "é questionável que judeus asquenazes tenham talento para trabalhar em ocupações não urbanas", argumentou, "há um lugar para os judeus do Oriente, e em particular para os iemenitas e persas, na agricultura". Assim como os árabes, ainda segundo Tehon, os sefarditas "satisfazem-se com muito pouco" e "nesse sentido, podem competir com eles".
Da mesma forma, em 1910 Shmuel Yavne'eli publicou no HaPoel HaTzair ("O Jovem Trabalhador", periódico oficial do Partido Trabalhista Sionista na Eretz Israel, posteriormente incorporado ao Partido Trabalhista) um artigo de duas partes intitulado "O renascimento do trabalho e os judeus do Oriente", no qual ele invoca a solução dos judeus orientais para o "problema" dos trabalhadores árabes. O jornal Hazvi encarregou-se de divulgar essa posição cada vez mais disseminada:
Este é o trabalhador simples, natural, capaz de fazer qualquer tipo de trabalho, sem vergonha, sem filosofia e também sem poesia. E o senhor Marx está, obviamente, fora dos seus bolsos e das suas mentes. Não estou defendendo que o elemento iemenita deva permanecer no seu estado atual, ou seja, na condição atual de barbárie e selvageria [...] o iemenita de hoje ainda vive no estágio de atraso dos fellahins [...] eles podem tomar o lugar dos árabes35.
Os historiógrafos reciclaram esses mitos colonialistas e aplicaram-nos aos árabes e judeus árabes como forma de justificar o posicionamento de classe ao qual os sefarditas eram projetados. Os trabalhadores iemenitas foram apresentados como "nada mais que trabalhadores", "matéria primeva" socialmente, enquanto os trabalhadores asquenazes eram "criativos" e "idealistas, capazes de se dedicar a um ideal, de criar novas formas e conteúdos de vida".
Considerados, pelos sionistas europeus, capazes de competir com os árabes, mas refratários a ideais socialistas e nacionalistas mais elevados, os sefarditas eram percebidos como os trabalhadores braçais ideais para importação. Portanto, a noção de "trabalhador natural" aliada a "necessidades mínimas" explorada por indivíduos renomados como Ben Gurion e Arthur Rupin passou a desempenhar um papel ideológico crucial, um conceito subliminarmente associado à cor. Nas palavras de Rupin: "Neles [judeus iemenitas] reconhece-se o toque do sangue árabe, e eles têm uma cor muito escura".
Os sefarditas ainda ofereciam a vantagem de ser otomanos, portanto, diferentemente de muitos asquenazes, sem impedimentos legais para entrar no país, graças, em parte, à representação judaica (sefardita) no Parlamento otomano.
Atraídos pela idéia de recrutar "judeus em forma de árabes", os estrategistas sionistas concordaram em agir pela "opção sefardita". O interesse político-econômico evidente por trás desse "retorno" seletivo fica perfeitamente perceptível nas cartas do emissário Yavne'eli, do Iêmen, nas quais ele afirma a sua intenção de escolher apenas "pessoas jovens e saudáveis" para a imigração. Os seus relatórios sobre a mão-de-obra braçal iemenita contêm detalhes meticulosos sobre as características físicas dos diferentes grupos regionais do Iêmen, descrevendo os judeus de Dal'a, por exemplo, como "saudáveis" com "pernas fortes", em contraposição aos judeus de Ka'ataba, que tinham "faces enrugadas e mãos magras".
Essas políticas de seleção quase eugênica foram recorrentes durante a década de 1950 no Marrocos, onde os homens jovens eram escolhidos para a aliya com base nos resultados de testes físicos e de resistência.
Muitas vezes enganando os sefarditas acerca da realidade da "terra do leite e do mel", os emissários sionistas articularam a imigração de mais de 10 mil sefarditas (na maioria iemenitas) antes da Primeira Guerra Mundial. Eles foram aproveitados como diaristas em trabalhos braçais na agricultura, em condições extremamente severas, com as quais, contrariando a mitologia sionista, definitivamente não estavam acostumados.
As famílias iemenitas foram amontoadas em estábulos, pastos, celeiros sem janelas (pelos quais tinham de pagar) ou simplesmente obrigadas a viver nos campos. As condições insalubres e a desnutrição causaram a disseminação de doenças e mortes, em particular de crianças. Os empregadores da associação sionista e os proprietários de terra asquenazes e seus supervisores tratavam os iemenitas com brutalidade, algumas vezes envolvendo o abuso de mulheres e crianças, obrigadas a trabalhar mais de dez horas por dia. A divisão étnica do trabalho, nesse estágio inicial do sionismo, implicava a divisão sexual do trabalho.
Tehon escreveu, em 1907, sobre as vantagens de ter famílias iemenitas vivendo permanentemente nos assentamentos, para que assim "também tivéssemos mulheres e meninas adolescentes trabalhando nas casas em vez das árabes, que atualmente trabalham por altos salários como serventes para quase todas as famílias de colonos". Na verdade, essas "felizardas" mulheres e meninas trabalhavam como domésticas, e o restante, nos campos. A exploração político-econômica andava lado a lado com os sentimentos de superioridade européia. Qualquer tipo de tratamento dispensado aos sefarditas era considerado legítimo, pois eles eram totalmente destituídos, pressupunha-se, de cultura, história e desenvolvimento material. Eram excluídos, ainda, dos benefícios socialistas concedidos aos trabalhadores europeus.
O sionismo trabalhista, por meio do Histadrut, conseguiu impedir que os iemenitas se tornassem proprietários de terras ou formassem cooperativas, limitando-os ao papel de assalariados. Da mesma forma que com os trabalhadores árabes, a ideologia "socialista" dominante no sionismo não dava nenhuma garantia contra o etnocentrismo. Ao mesmo tempo em que a Palestina era retratada como terra vazia a ser transformada pela força de trabalho judaica, os Pais Fundadores apresentavam os sefarditas como receptáculos passivos, que podiam ser moldados pelo espírito revigorante do sionismo prometéico.
Ao mesmo tempo, os sionistas europeus não estavam muito empolgados com a possibilidade de "macular" os assentamentos na Palestina com uma infusão de judeus sefarditas. Essa idéia, precisamente, foi recusada no primeiro Congresso Sionista. Nos seus textos e congressos, os sionistas europeus constantemente dirigiam os seus comentários aos judeus asquenazes e aos impérios colonizadores que poderiam apoiar o projeto de um território nacional. Os sonhos visionários de um Estado hebreu sionista não foram planejados para os sefarditas. Porém, a verdadeira realização do projeto sionista na Palestina, com a sua agressividade contra todos os povos locais ao mesmo tempo, trouxe consigo a possibilidade da exploração dos judeus sefarditas como parte de uma base política e econômica.
A estratégia de promover uma maioria judaica na Palestina para criar um território nacional hebreu implicava, a princípio, a compra e, subseqüentemente, a expropriação das terras árabes. A política, favorecida pelo Zionut Ma'asit ("sionismo prático"), de criar de fato uma ocupação judaica de terras árabes foi um elemento essencial das reivindicações sionistas na Palestina. Alguns sionistas temiam que os trabalhadores árabes em terras judaicas pudessem algum dia declarar que "a terra pertence aos que trabalham nela": daí a necessidade de trabalhadores judaicos (sefarditas). Essa versão distorcida do Avoda Ivrit gerou uma competição estrutural duradoura entre os trabalhadores árabes e o grupo majoritário de trabalhadores judaicos (sefarditas), agora rebaixados ao status de subproletariado.
Foi somente após o fracasso da imigração européia (mesmo no período posterior ao Holocausto, a maioria dos judeus europeus optou por emigrar para outros lugares) que o establishment sionista decidiu levar imigrantes sefarditas em massa. O sionismo europeu resgata a fantasia associada aos judeus do Oriente, ou seja, mascarou a necessidade de resgatar a si próprio de um possível colapso econômico e político. Da mesma forma, nos anos 1950 os oficiais sionistas continuaram a manifestar ambivalência quanto à importação em massa de judeus sefarditas. Porém, mais uma vez, necessidades demográficas e econômicas (o povoamento do país com judeus, a proteção das fronteiras e a existência de mão-de-obra para trabalhos braçais e soldados para a luta) determinaram a ação dos sionistas europeus. Dado esse subtexto, é instrutivo ler as versões higienizadas promovidas até mesmo pelos que estão mais diretamente envolvidos na exploração do trabalho sefardita.
O famoso Shlihut (emissário sionista promotor da aliya) de Yave'eli no Iêmen, por exemplo, sempre foi idealizado pelos textos sionistas. A lacuna entre o "privado" e o discurso de caráter mais público é especialmente surpreendente no caso do próprio Yave'eli, cujas cartas para as instituições sionistas enfatizam a procura por mão-de-obra barata, ao passo que as suas memórias descrevem as suas atividades com uma linguagem quase religiosa, como levar "aos nossos irmãos Bnei-Israel [filhos de Israel] distantes, nas terras do Iêmen, as novidades da Eretz Israel, as boas-novas da Renascença, da Terra e do Trabalho"47.
EPÍLOGO
Em muitos aspectos, o sionismo europeu tem sido um imenso golpe aplicado nos sefarditas, um massacre cultural de enormes proporções, uma tentativa, em parte bem-sucedida, de aniquilar, em uma geração ou duas, milênios de civilização oriental arraigada, unificada até mesmo em sua diversidade. O meu argumento, apresso-me a esclarecer, não é essencialista. Não estou postulando um novo binarismo de hostilidade eterna entre asquenazes e sefarditas. Em muitos países e situações, os dois grupos, apesar das diferenças culturais e religiosas, têm coexistido em relativa paz: é somente em Israel que a convivência se dá por uma relação de dependência e opressão (de qualquer forma, apenas 10% dos judeus asquenazes estão em Israel). Obviamente os judeus asquenazes foram as principais vítimas das variedades mais violentas de anti-semitismo europeu, um fato que torna mais delicada a articulação de um ponto de vista não apenas pró-Palestina, mas também pró-sefardita. Espera-se que uma crítica sefardita seja suprimida em nome de uma ameaçada "unidade do povo judeu" na era pós-Holocausto (como se dentro de todas as unidades, em particular as construídas recentemente, também não houvesse diferenças e dissonâncias). O meu argumento tampouco é moralista ou caracteriológico, do tipo que postula um esquematismo maniqueísta pela contraposição de judeus orientais benignos a asquenazes opressores malignos. O meu argumento é estrutural, uma tentativa de explicar em termos teóricos a "estrutura de sentimento", a corrente profunda de ódio contra o establishment israelense, que une a maioria dos sefarditas, independentemente da filiação partidária declarada. O meu argumento é situacional e analítico, defende que a formação sociopolítica israelense gera continuamente o subdesenvolvimento dos judeus orientais.
Um fantasma assombra o sionismo europeu: o medo de que todas as suas vítimas — palestinos, sefarditas (assim como os asquenazes críticos, dentro e fora de Israel, estigmatizados como descontentes "que odeiam a si mesmos") — finalmente percebam as similitudes que vinculam as suas respectivas opressões.
O establishment sionista em Israel fez tudo que esteve ao seu alcance para materializar esse fantasma: o fomento da guerra e o culto da "segurança nacional", o retrato simplista da resistência palestina como "terrorismo"; o incitamento de situações que catalisam a tensão entre sefarditas e palestinos; a caricaturização dos sefarditas como indivíduos que "odeiam árabes" e são "fanáticos religiosos"; a promoção, por intermédio do sistema educacional e da mídia, de sentimentos de "ódio aos árabes" e auto-rejeição sefarditas; e a repressão ou cooptação de todos aqueles que promovem a aliança entre sefarditas e palestinos. Não tenho nenhuma intenção de igualar o sofrimento palestino ao sefardita (obviamente os palestinos são os mais flagrantemente injustiçados pelo sionismo), tampouco de comparar as longas listas de crimes cometidos contra ambos. O ponto é de afinidade e analogia em vez de identidade perfeita de interesses ou experiências. Não estou pedindo que os palestinos sintam pena dos soldados sefarditas que estão entre os adversários que os atacam. Não são os sefarditas, está claro, que estão sendo mortos, dia após dia, nas ruas de Gaza ou nos campos de refugiados do Líbano. O que está em jogo, de qualquer forma, não é uma competição por simpatia, mas uma busca por alternativas. Até agora, os palestinos e os sefarditas têm sido os objetos e não os sujeitos da ideologia e das políticas sionistas, e até agora eles têm sido jogados uns contra os outros. No entanto, não foram os sefarditas que tomaram as decisões cruciais que levaram ao brutal deslocamento e opressão dos palestinos (mesmo que depois disso os sefarditas tenham sido alistados como "bucha de canhão"), tampouco foram os palestinos que desarraigaram, exploraram e humilharam os sefarditas.
O regime atual em Israel herdou da Europa uma forte aversão ao direito de autodeterminação dos povos não-europeus: daí a qualidade inusitada, vestigial e descompassada do seu discurso, a fala atávica das "nações civilizadas" e do "mundo civilizado". Na mesma medida em que é impossível imaginar a paz entre Israel e árabes sem o reconhecimento e a afirmação dos direitos históricos do povo palestino, uma verdadeira situação de paz não poderá prescindir dos direitos coletivos dos judeus orientais. Seria obtuso negociar apenas com os que estão no poder ou envolvidos pelo poder, relegando a sujeição de judeus de países árabes e muçulmanos à mera categoria de um assunto "judaico interno" (uma posição que seria análoga à atitude sionista que considera a questão palestina como um problema "interno" árabe).
Não estou sugerindo, obviamente, que todos os sefarditas possam ser enquadrados pela minha análise, embora a maioria endossaria boa parte dela. Estou sugerindo, na verdade, que somente uma análise desse tipo é capaz de abordar as complexidades da situação atual, e a profundidade e extensão da revolta sefardita. Por fim, a minha análise pretende abrir uma perspectiva de longo alcance, que poderia ajudar em um esforço maior de fazer avançar o intolerável impasse atual.
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