segunda-feira, 22 de março de 2021

DEPOIS DO DANÚBIO AZUL

 


Sua Alteza Sereníssima Ann-Béatrix de Guardila-Haltenhexe é o nome de minha esposa. Encontrei-a pela primeira vez em jantar de petit-comité num submarino ancorado a poucos metros da Torre de Belém. Ainda vivíamos na saudosa época de Antônio de Oliveira Salazar. Que Deus o tenha eternamente sentado à sua direita! O comandante da (um tanto enferrujada) embarcação ostentava o açoriano título de visconde da Beirada. Seu maior desejo era casar com uma princesa. Que fosse de coroa aberta, já que as detentoras de coroa fechada seriam inacessíveis a um obscuro comandante naval, por prestigioso que se apresentasse no seu uniforme impecavelmente branco.

O destino nos pega cada partida! O visconde acabou desposando uma das centenas de baronesas austríacas – dizem que tem mais barões entre a catedral de Santo Estevão e o Café Sacher que em todo o resto da Europa. E eu que não queria casar, não somente estou de aliança no dedo, mas até pai de duas lindas crianças. Maria-Alba aos dezessete anos já é um mulherão com sua farta cabeleira negra e seu busto de fazer inveja às atrizes de Hollywood. Fala pouco e sorri timidamente, assim que a semana passada fiquei extremamente aborrecido quando recebi uma carta anónima afirmando que minha filhinha não passava de uma ninfomaníaca. Me diga: este tipo de covardia merece dois tiros ou não merece? Pois eu daria até três e sem o mínimo remorso! Quando ao Rodolpho, aos vinte anos não hesita em afirmar que já pegou a metade do mulherio do quarteirão, até as casadas. Ele é meu orgulho.

Com três valentões velhos amigos, formou uma equipe que sai de noite nos fins de semana com cassetete para perseguir os pederastas dos jardins do Trocadéro. E haja surra! Sempre falo para ter cuidado pois se a polícia aparecer... Só faltaria ter nosso nome na página policial dos jornais. Que mais poderia fazer? Estes jovens têm excesso de adrenalina!

Voltemos a meu casamento. Foi em Viena, tudo organizado pela viscondessa da Beirada. Custou uma pequena fortuna, mas se um dia vier a minha casa, vou lhe mostrar o filme. Vai ver. Foi des-lum-bran-te!

Na véspera houve um jantar de gala para oitenta pessoas no palácio Auersperg. Uma dúzia de familiares e o restante de amigos íntimos.A cerimônia religiosa aconteceu na igreja barroca da Ordem dos Servitas de Maria com um coral de crianças. Minha noiva chorava de emoção. O baile no palácio Esterhazy seria o evento inesquecível de nosso casamento, se...

Imaginem uma sala próxima em esplendor ao Salão dos Espelhos em Versalhes. Vinte antigos lustres para refletir as faíscas dos diamantes das tiaras e os bordados de seda dos vestidos coloridos. Um buffet com o melhor das iguarias de Viena e um exército de garçons deslizando entre os convidados a oferecer champagne e vinhos raros.

Ann-Béatrix trocara o vestido de noiva que pertenceu à sua bisavó, todo de renda de Bruxelas, por um dirndl, vestido tradicional austríaco de seda pintado à mão com decote quadrado e avental. Curioso, né? Na nossa mesa, além dos viscondes da Beirada, uma francesa gorda e condescendente coberta de joias que surpreenderiam até a rainha da Inglaterra. O problema é que quando abre a boca a vulgaridade ocupa a mesa inteira. She is not a lady.

Estou vermelho de satisfação, beirando uma congestão. Que caminho desde o submarino! Os milagres que uma polpuda conta bancária não faz...

A orquestra se prepara. Vamos abrir o baile com O Danúbio Azul, a valsa de Strauss. Ann-Beatrix e eu tomamos umas aulas. Quatro minutos de puro encantamento. A vida é um sonho. 

De repente a mesma orquestra arruína toda a magia do momento ao atacar aqueles rocks abomináveis que sempre têm nomes americanos Elvis Presley, Johnny Halliday, Mash Potato... e haja twist! Um horror! Um atentado ao requinte dos convidados, do aristocrático salão, da ostentação geral de ouros, rubis e esmeraldas.

Não se faz mais baile como antigamente.

 

Dimitri Ganzelevitch

Salvador, 22 de março de 2021

 

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