RUY ESPINHEIRA
Caminho entre túmulos
caminho
sob árvores exaustas de velar os mortos
caminho
aos vinte e três dias da tua ausência
na mão esquerda o frio da alça do caixão
que não soltei
nem quando cimentaram a pedra sobre ti
que não soltarei nunca
Devagar
caminho
que não tens pressa nenhuma
na mão direita estas três rosas vermelhas
úmidas do falso orvalho comercial
mas rosas rosas rosas
a flor que chamavas perfeita
(e em ti como era rara a palavra
perfeição)
Caminho
e não venho do carro que deixei na porta
do Campo Santo
nem
do apartamento silencioso
mas
de muito mais longe e antes
de uma névoa
através da qual te vejo
vencendo as ondas com braçadas vigorosas
ao sol dos anos quarenta
ou
à noite
guiando o meu olhar para o farol
além da baía
ou
alto entre amigos
rindo muito
eu feliz à luz
azul
que baixava dos teus olhos
Caminho
é escuro o corredor assoalhado
e imenso e frio
e é amargo o peito desse menino que anda sobre as tábuas rangentes
sozinho
esse menino recordando outra casa
velha
muito velha
com ratos fazendo ninho nos gavetões da cômoda
nas gavetas da máquina de costura
as paredes de adobe sujas e descascadas
mas a porta se abrindo para a rua calma
a cozinha descendo
por degraus carcomidos
para o amplo quintal do tamarindeiro
do pé de jaca-de-pobre
da romãzeira que não crescia
presente de Peter Pan
dos cachorros numa alegria pânica quando os visitavas
assim era
assim sonha esse menino em seu peito amargo
passeando sua dor sobre as tábuas gementes
e
de súbito
emerges do sonho pela porta entreaberta
o chapéu um pouco inclinado para a direita
a mala na mão esquerda
na outra a estrela do cigarro
e nada mais é escuro
Estas três rosas vermelhas
a primavera em julho aquecendo os jazigos
a brisa inútil contra a imobilidade do triste anjo de bronze
que vela o sono da adolescente
(ele bem sabe:
não virá nenhum príncipe
despertá-la)
nada parecido
com aquela madrugada
mas
me recordo
não ouço mais meus passos sobre
o calçamento
ouço
um tinir de colheres e xícaras e garfos e facas e pratos
à luz de candeeiros
vejo
a manteiga derretendo sobre o aipim
e contas o caso de um preso que libertaste
e todos te escutam com atenção
respeito
e o café fumegando
forte
e acendes um cigarro e eu te admiro
e nos erguemos e saímos para a névoa cerrada
e me perguntas se estou com frio
e eu minto que não
e o jipe desce lentamente a estrada
entre cercas e árvores e histórias
de onças perdizes veados cascavéis
e eu vou orgulhoso entre os experimentados aventureiros
e a névoa se ergue e o dia vem ao nosso encontro
e vemos que é bom
E houve outra manhã
a seção eleitoral fechada sob cerco de armas
sais de casa sem um companheiro
percorres as ruas de outubro quietas de medo
ao peso de tua mão
a porta se abre
nem um rilhar de dentes se ousa contra o teu gesto
conclamas os mesários
o povo
teu perfil guarda a porta até o fim da tarde
à noite voltas para casa no mesmo passo tranquilo
indiferente a seres jovem demais para morrer
Arraias
uma estrela azul de cinco pontas
o imenso couro-de-boi em papel de embrulho
acompanho as tuas mãos cortando
colando
com a mesma precisão com que inventavam balões
(um de três bocas ficou numa fotografia
elevando-se na praça junto à igreja velha)
com a mesma delicadeza
com que passavam as páginas dos livros
teus irmãos
Noites e noites
acordando e ouvindo tua veloz datilografia
ou o silêncio de tuas leituras
às vezes o ruído de um fósforo sendo aceso
e o cheiro do Astória como um afago
Caminho
bebes com amigos na sala
tua voz domina
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada...
tua voz
Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios...
ah
sabias como poucos que
a thing of beauty is a joy for ever
Caminho
em tua missa de sétimo dia me contaram
estavas preso em 64
no 19º BC
depois de passagem pelos fortes do Barbalho e Montserrat
o oficial não te deixou conversar sozinho com o advogado
a uma pergunta disseste que não te haviam torturado
não a ti
mas que de tua cela escutavas gritos
pancadas
súplicas
gemidos
que aqueles fardados eram indignos
do gênero humano
vermes
o oficial empalidecendo
Caminho
passo pelo portão de ferro
nada me indicava esta sexta-feira entre muros habitados por mortos
depois de amanhã deveríamos almoçar juntos
como sempre
à sombra de um denso vinho tinto maduro
depois de conhaques ou licores caseiros
bebidos na varanda
em torno da mesa com tampo de vidro
confortáveis nas cadeiras de vime
de alto espaldar
depois de amanhã
como tantas vezes
depois de amanhã
como nunca mais
Aquele baile
eterno em algum lugar no Tempo
mandam parar a orquestra:
certa presença ofende
senhoras e senhoritas
uma de má fama
não
ali não pode permanecer
exigem
providência ao senhor presidente
já
e
escutas o pedido
ordenas à orquestra música
atravessas o salão e chamas a moça para dançar
Caminho
a brisa é suave e há pássaros cantando
mas não a perdiz oculta no capinzal
não o pássaro-preto que assoviava em teu dedo
e morreu sufocado pelo pó de uma parede em demolição
mas
bem-te-vis acrobáticos
nesta manhã entre túmulos
uma borboleta
passa rente aos meus olhos
e aqui estou
aqui estou parado
lendo sem acreditar teu nome na pedra
sob o número 3844
e o tempo que tiveste
1921-1986
breve demais para a tua medida
Aqui estou
e não creio
falavas em envelhecer longa e serenamente
e te imagino aos oitenta relembrando canções
reinterrogando éticos
à sombra da catedral barroca de Vieira
Aqui estou e não creio
enfio na terra as três rosas vermelhas
e não creio
leio os nomes dos teus vizinhos
Osíres Agenor Olga Maria Dolores
esta nascida no ano em que nasceu
teu poeta Fernando Pessoa
Aqui estou
e não creio
porque em mim tuas palavras
tuas viagens a cavalo através das matas úmidas
a memória do pomar da infância e do grande
carvalho fendido por um raio
o árduo trabalho pela justiça pago tantas vezes
com perus requeijões frutas hortaliças
ou não pago jamais
aquela manhã no quadrimotor eu 12 anos de idade
e na mão
a história dos cavaleiros da Távola Redonda
o comício contra os fuzis
a cadela Baiana gemendo baixinho enquanto lhe
costuravas o ventre
perfurado por uma estaca
de cerca
a dignidade
insuavizável como a do teu pai
a compreensão e o generoso
amor
Caminho
novamente caminho
estás comigo como quando pousavas a mão no meu ombro
a ternura contida mas espessa
Estás comigo
juntos retornamos
ao áspero respirar da cidade
e me fazes cálido e forte
e ninguém percebe
que a estrela Absinto desabou sobre mim.
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