Vamos falar de flores?
Cheguei ao aeroporto Charles
De Gaulle na tarde fria de uma sexta-feira, véspera oficial da primavera. Nem
por isso a paisagem promete o esperado despertar boticelliano. Camisa grossa,
dois pulôveres e blusão não bastam para impedir aquele ventinho viciado que
ignora a derrota e me congela até a moela. Árvores nuas, escuras, krasczbergianas.
Aliás, uma escultura do Franz humaniza um interminável e metálico corredor.
Referência a Arte, última bóia...
Horas depois, a abadia de
Cluny me abre suas imensas e milenares portas, entrando assim mais ventos
cinzentos, gelados. Felizmente, o quarto monacal tem bom aquecimento. Terei
como companheiro o marroquino conservador do sítio romano de Volubilis, sítio
que conheço desde criança. Rachid só aparecerá na noite seguinte. Não ronca, o
que já é uma benção. A semana de formação intensiva será intensiva mesmo.
Começando pontualmente ás 9, termina pelas 22:30, com duas curtas horas para
refeições. A qualidade destas refeições, em faculdade pública, mesmo de alto
nível, muito vai me surpreender. Só faltam mesmo os vinhos da Borgonha, que
tanta competição fazem a Bordeus. Mas como nos concentraríamos sobre os
depoimentos dos colegas com Baco na cabeça?
Lá fora o gélido chuvisco
continua negando a impaciência da natureza. Vez ou outra um raio de sol, nada
tropical, é sinal de esperança. Os africanos são sempre os primeiros a aparecer
na sala de conferência e na cantina. Alegres e descontraídos, lembram as dunas do
Saara, as águas claras de ilhas a caminho do Oriente. Quando falam, em francês,
impressionam pela qualidade do discurso, forma e fundo. Aqui a língua de Victor
Hugo reina absoluta, com a benção da Unesco. E é bom que assim seja, pois
línguas e dialetos também são patrimônios culturais e recorrer sistematicamente
ao americano seria negar esta verdade.
Nos jardinzinhos da pequena
cidade de Cluny, flores amarelas começam a cobrir magros arbustos, primeiro
sinal dos novos tempos. Um jovem historiador defende o restauro de um castelo
vizinho, saído de um conto de fadas, perdido no meio da floresta. O arquiteto
canadense fala das dificuldades de manter a homogeneidade patrimonial da ilha
de Orleans, no Quebec. Uma ponte e uma estrada central estão descaracterizando
o sítio e os habitantes se recusam em entender o perigo. Lembro de outras
ilhas, bem aqui na minha frente, pelas quais não existe o mínimo projeto de
preservação.
Entretanto, as árvores
passaram do marrom ao cinza que em poucos dias se transformará em verde amêndoa,
acabando explodindo em milhões de tenras folhas. A terra também corre contra o
tempo e se cobre de novos gramados que o vento dobra.
O professor arquiteto belga
mostra um documentário sobre outra ilha tombada, a de Saint Louis, no Senegal,
vítima da burro-cracia local que resolveu retirar velhos bancos de areia e,
mudando as correntezas, acabou com a pesca e o frágil equilíbrio social da área.
A representante da Unesco fala de forma simples e clara das condições exigidas para
que um sítio seja declarado Patrimônio Mundial. Lá pelo fim da formação, me confessará
já ter ouvido falar de meu trabalho na Bahia. Como é gratificante saber que em
algum longínquo lugar do planeta, alguém sabe das minhas lutas e simpatiza com
elas!...
Na quinta-feira, mudança de
programa. Em vez de teoria, vamos vasculhar o sitio arqueológico galo-romano de
Bibracte. Após duas horas de confortável ônibus, chegamos ao meio da floresta.
Região montanhosa. O frio se fez mais penetrante. O museu, iniciativa de
François Mitterand, de linhas contemporâneas, construído na parte baixa do sítio,
se insere harmonicamente na paisagem. A subida até as cimas será saudável
exercício após tantos dias sentados na sala de trabalho. A vista se estende por
imensidões sem que nada a agrida. É que, quando um sítio é tombado, seu entorno
também é considerado parte do patrimônio.
Tal qual o lamentável caso,
aqui, do Hotel Hilton no Comércio.
Na serra, a primavera ainda
não deu o ar de sua graça. De verde, só os musgos dos velhos troncos. O
entusiasta diretor explica detalhadamente as etapas das escavações e os métodos
aplicados. É evidente a generosa verba investida
Entretanto, os deuses que
decidem das mudanças sazonais trabalham sem descanso durante a noite, pois a
cada manhã algo mudou na paisagem. Nascem as violetas glicínias, aparecem as primeiras
pirâmides de florzinhas brancas nas castanheiras, as macieiras, ameixeiras e
cerejeiras, cobertas de vários tons de rosa e de branco, fazem de cada olhar
uma festa impressionista.
A passos largos a primavera
enfim se instala nos mínimos cantos e recantos. Ao longo da estrada, no
cemitério, entre as trilhas da ferrovia, nos canteiros dos estacionamentos, na
porta da padaria e do açougue, pequenas ou grandes, flores inundam o olhar com
suas cores. Perfumes sensuais. Somos todos jovens, lindos e saudáveis. Todos
sorriem e se amam... É primavera, gente!
O conservador do palácio de
Valtice, bem perto de Praga, me convida a sua casa, prometo ver o novo centro
de acolhimento de Volubilis, iria até a Finlândia, não fosse meu pavor ao frio,
preciso conhecer o Togo e o Mali, agora com amizades preciosas – e os africanos
têm a hospitalidade como fundamento tradicional - e se for a Madagascar, velho sonho, a Baby
Victória será cicerone excepcional.
Agora, a nova estação começa
a subir em direção ao norte da França e em poucos dias terá entrado, vitoriosa,
em Paris...
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 4 de maio de 2009.
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