Sonia Rabello: Iphan virado do avesso
A urbanista Sonia Rabello fala sobre o caso do “destombamento” na Rua dos Inválidos, no Centro do Rio
Para o órgão federal de defesa do patrimônio histórico, o prédio (Foto de Hoje, 15/02/2022) "inexiste fisicamente". O órgão justifica o destombamento considerado irregular por 9 entre 10 especialistas em nota ao DIÁRIO DO RIO.
Há menos de mês, no último dia 25 de janeiro, foi publicado na seção 3, página 112, do Diário Oficial da União, uma nota da presidente do Iphan comunicando o seu ato de “cancelamento do tombamento do prédio da Rua dos Inválidos nºs 193 a 203”, situado no Centro do município do Rio de Janeiro.
Apesar da excepcionalidade do ato, a sociedade brasileira, fluminense e carioca só ficaram sabendo de tal decisão quando foi noticiado pelo Diário do Rio que havia operários no prédio da Rua dos Inválidos procedendo a demolição das paredes e dos madeirames, “sem licença de obra afixada no prédio”!
O fato provocou imediata comoção na sociedade civil, pois trata-se de prédio tombado desde 1938 como patrimônio cultural nacional, e o fato de haver operários procedendo a sua demolição é prova cabal e notória de que o prédio ainda existe no nosso universo cultural.
E por que é importante esta afirmação?
Porque verificamos, nos ainda insipientes documentos que tivemos acesso sobre a inédita e rápida decisão de cancelamento do tombamento do prédio, no parecer do Coordenador Geral de Identificação e Reconhecimento, o historiador Adler H. F. Castro, uma afirmação surpreendente: “Só resta, portanto, reconhecer que o bem tombado não mais existe e não pode ser recuperado, cabendo o cancelamento do tombamento por perecimento do bem”.
Contudo, a posição do historiador de que o “bem tombado não existe mais” é metafórica, já que sua opinião, não como arquiteto restaurador que não é, mas como historiador atualmente ocupante de cargo de confiança, é de que “não é mais possível restaurar.” Para isso diz que, apesar do palacete ainda ter paredes, as têm em menos de 30% do que era “considerados como mínimo para que este por [sic] ter recuperada sua ‘unidade potencial de obra de arte’, como escreveu Césare Brandi.”
Ora, o dito “papa” Césare Brandi escreveu isto onde e para a universalidade das situações? É este o critério definido pelo Iphan e por seu Conselho para declarar o perecimento de um bem tombado? Claro que não! Se assim fosse, por que estariam reconstruindo o Museu Nacional? Com este critério, mais da metade do muitas cidades brasileiras já poderiam ser destombadas, o que seria teratológico!
Mesmo assim, apesar desta análise simplória para a proposta de decretação de perecimento do bem tombado, o cancelamento do tombamento do prédio da Rua dos Inválidos foi celeremente encaminhado e decidido pelo Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização e pela Presidência do Iphan.
E a Presidência do IPHAN poderia declarar o cancelamento de um bem sem ouvir o órgão que participou da decisão de seu tombamento?
Via de regra, no Direito Administrativo, a competência para desfazer um ato administrativo é da autoridade competente para fazê-lo. Por isso, mesmo se houvesse o efetivo perecimento do bem, entendo que caberia ao Conselho de Tombamento participar da chancela de seu “destombamento”.
E ainda; o cancelamento do tombamento do prédio da Rua dos Inválidos baseou-se em parecer jurídico dado pela Procuradoria do Iphan em outro processo de cancelamento de bem, no qual a procuradora justifica que a Presidência do Iphan poderia fazê-lo, pessoalmente, em caso de total ausência de materialidade do bem tombado, o que não é o caso da Rua dos Inválidos, no qual o suposto perecimento é metafórico, por interpretação de valores existentes, ou não, no bem parcialmente destruído.
Vejam o que diz o item 46 do dito parecer, e que não foi observado no caso do destombamento da rua dos Inválidos, tal a pressa com o qual ele foi feito: “Frise-se que, na hipótese de não ocorrência do perecimento total do bem, se fazendo necessário proceder a juízo de valor sobre o bem, deverá os autos serem encaminhados para análise e deliberação do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural”. (grifos nossos). E, por perecimento total, leia-se, ausência total de materialidade do prédio!
Portanto, mesmo à luz do parecer jurídico da Procuradoria do Iphan, o ato de destombamento do prédio da Rua dos Inválidos não seria da competência da Presidência do Iphan, mas do Conselho Consultivo do órgão, por envolver “juízo de valor”. Aliás, esta foi a afirmação, em Juízo do IPHAN, constante na decisão de cautelar deferida em 19/01/2022, pelo Juízo da 28º Vara Federal de 19/01/22, na qual foi reproduzida a seguinte afirmação feita pelo IPHAN: “Não se pode descartar ainda a possibilidade de que o órgão de patrimônio histórico venha a entender que já tenha ocorrido o perecimento do bem (…), conclusão a que se pode chegar depois de regular análise pelo Conselho Consultivo do IPHAN, em procedimento próprio“. (grifos nossos)
Felizmente, tivemos notícias de que o Ministério Público Federal já peticionou no processo judicial que busca a restauração do bem, pedindo liminar de suspensão da demolição do prédio da Rua dos Inválidos. Aguardando uma rápida decisão judicial, terminamos com a citação feita na petição do MPF, de uma insólita reflexão do parecerista A.H.F.C., no qual ele justifica o cancelamento do tombamento.
“Lamentamos que esta solução [destombamento] vá prejudicar a sociedade brasileira, que por meio do Iphan tanto investiu ao longo de décadas em tentativas de manutenção deste bem tombado. Por sua vez, a medida beneficiará as pessoas que ao longo de gerações se recusaram a cumprir suas obrigações, chegando ao ponto de desobedecer a uma decisão judicial. Isso por que o terreno poderá ser vendido para especulação imobiliária com grande lucro para os proprietários. Entretanto, não vemos outra forma possível de agir.” (grifos nossos)
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