Xingar é um ato de amor, disso não tenho a menor dúvida. É um ato de amor próprio, inequívoco sinal de que sua autoestima está em ordem. Você não guarda rancores, raivas desnecessárias, extravasa. O que importa é xingar na dosagem certa, mesmo que em algumas ocasiões a dosagem seja um tsunami. É o caso de meu alvo, Eduardo, o insuportável robô de cobrança das Casas Bahia, um desocupado; quando afetado programa a sua voz insonsa, que a gravação torna irritante, até quinze a vinte vezes por dia.
O chato é que Eduardo não responde. Me respondeu apenas uma vez__ acho que o programador previu a situação__ quando com todo o afeto que a ocasião requeria falei: “Eduardo, meu querido, não leve a mal, nada pessoal, me faça um favor: vai tomar na sua tarraqueta”. Para minha surpresa ele reagiu: “minha tarraqueta é uma porca, só uma chave inglesa mexe aqui”.
Imaginei que depois do susto Eduardo me ignorasse. Não esqueceu de mim. Ligou cinco minutos depois e eu ainda testando toda a minha capacidade de afeto, desta vez fui direto, sem preliminares: Eduardo você é um biltre, patife, sacana, miserável, palerma, canalha, sacripanta, mocorongo, cachorro, filho da puta, abigeato, sevandija, mentepcato, verme, cafajeste, imbecil, idiota, sicofanta, corno, vagabundo, salafrario, bigorrilha, ordinário, marau, desprezível, escroto, beócio, capeta, chupa-prego, jumento, bosta, babaca, mariola, pulha. Nem terminei de expressar meus caros sentimentos, Eduardo foi logo tirando da reta: “Desculpe não entendi, pode falar de novo?”
Eu disse que você é um pulha, seu porra ! Caiu a ligação e, confesso, achei que na hora certa, me excedi em chamar o miserável de pulha. Lembrei que David Nasser tomou um soco de Leonel Brizola, no meio da cara, no balcão da Varig do Galeão, em 1963, por ter categorizado ele como pulha, no título do editorial para a revista O Cruzeiro. Nasser não apenas o qualificou como extrapolou o verbo; “Triste é o jornalista que tem o dever, neste prefácio de lama, de enfiar a pena no seu sangue pútrido, na sua carreira putrefata e na sua figura pífia, para cumprir o sagrado papel de revelar à geração atual e à geração futura, que nós não tivemos culpa de o senhor existir...”
E, sem escrúpulos, prosseguiu na sua arenga: “Acredita...esse pangaré mordido de cascavel verborrágica, esse rebotalho humano que exibe a sua cunhadeza ... imagina o senhor Leonel Brizola, o capadócio cunhoso, que um homem de bem não sabe, não pode lhe responder na sua linguagem sem asseio. Pois aí está. Já uma vez lhe disse que vai chover água de rosa. Mais de uma vez lhe avisei que perto de nós o Kama Sutra vai parecer breviário de noviça. E aqui vai a última advertência ao desditoso abigeato: quem invade o lar alheio, abre a porta de seu próprio lar”.
Sorte minha que Eduardo não foi programado para saber o que é pulha e não frequenta espaços públicos, nenhum risco dele revidar. Revidou de outro jeito. Ligou de novo, uma e outra vez e mais outra e ligou, ligou... bem na hora em que meu filho, coitado, entrou no quarto para me avisar que ia pegar o carro: “Pai, vou na praia me encontrar com meu amigo de infância, que voltou da Europa, Eduardo, lembra dele?”.
Bom de reflexos, tirou a cara para não levar um tapa. E antes que eu pudesse justificar o meu impulso irrefletido, o telefone tocou para quebrar o clima: “Olá. Aqui é Eduardo das Casas Bahia. Quero falar com Nelson. É você?”. “Sou eu me querido, esqueci de lhe dizer que você é um mequetrefe, seu robô enferrujado, filho de... uma lata velha”.
Crônica publicada no Correio
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