por Eduardo Souza Lima
Não adianta culpar a guerra na Ucrânia ou o coronavírus: não há
justificativa que explique o aumento da fome no Brasil. A hipótese mais
provável é que se trate de um projeto, não mera consequência de medidas
desastradas. De que outra forma é possível explicar que ao mesmo tempo em que
as exportações do agronegócio renderam, em março, a soma recorde de R$ 14,5
bilhões, hoje 33,1 milhões de brasileiros não tenham o que comer, contra 19
milhões em 2020? “Quem recebe R$ 400 por mês de Auxílio Brasil, pode ter dificuldade,
mas fome não passa”, minimizou a tragédia o senador Flávio Bolsonaro.
Quando fala
em “dificuldade”, o filho do presidente deve estar se referindo aos 60% da
população que sofre algum tipo de insegurança alimentar – como ter que escolher
entre jantar ou almoçar. Os dados são do mesmo levantamento do instituto Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede
Penssan) que apontou o espantoso aumento de famintos no país em dois anos. Já
de acordo com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), a cesta básica
está custando no país, em média, R$ 758,72. O presidente prometeu que faria o
Brasil voltar a ser o que era há 40, 50 anos; neste quesito em particular, já
são quase 30, pois regredimos ao patamar de 1993.
O
salário-mínimo, renda máxima de 38% dos trabalhadores do país, está em R$
1.212; cerca de 18,1 milhões de pessoas receberam em maio a merreca de 400
pratas do Auxílio Brasil, segundo o Ministério da Cidadania. Para estes,
sobraram R$ 853,28 para “ter dificuldade”; pros outros 18,3 milhões de cidadãos
não contemplados, nem isso. A inflação corroeu rapidamente a moeda de troca
eleitoral de Bolsonaro; os R$ 400 reais já valem bem menos do que quando o
programa do governo foi inventado. Daí ele não estar extraindo os dividendos em
forma de voto que esperava.
O
presidente colhe o que plantou. Já em 2019, começando seu mandato, ele mandou
fechar 27 armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Cabe ao
órgão, vinculado ao Ministério da Agricultura, cuidar do chamado estoque
regulador do governo. Este serve não só para controlar os preços em período de
entressafra e combater a especulação – tem agricultor que joga comida fora para
o preço subir, como estamos carecas de saber – mas também ajudar no combate à
fome, na proteção a pequenos agricultores, e em garantir alimento a vítimas de
desastres ambientais.
Para se ter
uma ideia de como essa importante política vem sendo desmantelada, em 2013,
havia 944 toneladas de arroz estocados em armazéns do governo; em 2015, mais de
1 milhão de toneladas. Em 2020, eram só 22 toneladas, que não dava nem para
matar a fome da população em uma semana. Hoje, nem isso. Os mais pobres que
esperem chover maná, como na passagem da Bíblia. Com a alta do dólar, os
chefões do agronegócio preferem exportar sua produção, ajudando a desabastecer
o mercado nacional e provocando a alta dos preços. É uma lógica cruel, a ponto
de o maior produtor e exportador de soja do mundo ser obrigado a importar óleo
da vizinha Argentina.
“Há pouco tempo,
o Brasil era referência mundial de políticas públicas para reduzir a miséria e
a fome. Essas políticas ao longo dos últimos anos foram totalmente
negligenciadas, ou reduzidas, ou extintas. O primeiro ato do governo atual foi
extinguir o Conselho de Segurança Alimentar. A fome tem uma causa e uma vontade
política”, afirma Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania contra a
Fome, ONG criada por Herbert de Souza, o Betinho, em 1993. Enquanto isso, na
lista de bilionários brasileiros da revista “Forbes”, 19 empresários do ramo
dividem US$ 78,7 bilhões. As fortunas pessoais – ou familiares – desses
felizardos variam de US$ 15,4 bilhões a US$ 1,3 bilhão. Na lista estão o homem
e a mulher mais ricos do país, Jorge Paulo Lemann e Lucia Maggi – mãe de Blairo,
conhecido desmatador que foi ministro da Agricultura de Michel Temer.
A citação
do parentesco não foi gratuita. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA),
mais conhecida como bancada ruralista, ocupa 241 cadeiras das 513 do Câmara
Federal e 39 das 81 do Senado. São números absurdamente desproporcionais, já
que 84% da população brasileira vive em áreas urbanas e apenas 15,6% em zonas
rurais – e mais ainda, se levarmos em conta que esses congressistas representam
apenas os interesses de algumas dezenas de felizardos. Por outro lado, só
quatro em dez famílias brasileiras têm acesso pleno à alimentação. Nunca tantos
passaram necessidade por tão poucos.
O agro não
planta para encher nossas barrigas, mas seus bolsos. E é quem passa necessidade
que paga por isso. O lobby é o principal fertilizante do agronegócio, assim
como a soja, seu principal combustível. E, para se ter uma ideia, o Brasil
colheu a maior safra de todos os tempos, com aproximadamente 139 milhões de
toneladas do grão e exportou 86 milhões desse total. “Nosso foco de apoio tinha
que ser na produção de alimentos que nós consumimos. Por que a gente precisa
subsidiar tanto um mercado que exporta todo o alimento e não põe comida na
nossa mesa?”, questiona Kiko Afonso.
Os agrados
do governo molham mãos e irrigam a atividade. Não à toa, o agro segue fechado
com Bolsonaro. O Ministério da Agricultura quer aprovar até o fim do mês o
Plano Safra 2022/23, no valor de R$ 330 bilhões – o do período anterior foi de
R$ 251 bilhões. “O agro nunca teve tanto dinheiro”, confessa o deputado Sérgio
Souza (MDB-PR), presidente da FPA. O pequeno e o médio produtor rural dão
emprego para 10 milhões de trabalhadores contra 1,4 milhão dos grandes
latifundiários, e são eles que produzem a comida que chega no nosso prato. Mas
a verba reservada para a agricultura familiar vem murchando: em 2012, por
exemplo, era de R$ 512 milhões; em 2019, foi 93% menor, R$ 41 milhões. Hoje
está em magérrimos R$ 89 mil.
Existe o
crime organizado e o crime legalizado – como pretende o PL da Grilagem, que
premia invasores de terras indígenas e unidades de conservação, que são bens da
União. Só nas primeiras, foram reconhecidos pelo governo Bolsonaro 2,5 mil km²
de fazendas, desde abril de 2020. É um patrimônio de todos nós passando para as
mãos de particulares. Os danos causados pelo agronegócio ao Cerrado e à
Amazônia e, por consequência, às nossas reservas de água e ao clima do planeta,
são amplamente conhecidos – e até a conta de termelétricas usadas na irrigação
de lavouras de soja nós estamos pagando, contribuindo involuntariamente com
esses problemas.
Ambientalismo
sem justiça social é jardinagem – daí hoje a palavra socioambiental ter sido
adotada. O fator humano não pode ser excluído da equação que envolve a natureza
e a produção de alimentos. A solução para ela se chama desenvolvimento
sustentável. O Brasil saiu do mapa da fome em 2013 e voltou em 2018. Ao mesmo
tempo em que roncam os nossos estômagos, o país contribui para que o futuro do
mundo seja mais sombrio. A ganância e a perversidade de uns poucos têm feito
com que a gente perca muito sem ganhar nada em troca. Nossas escolhas definem o
nosso futuro. As eleições estão chegando: plante nas urnas um mundo melhor.
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