por OTTO FREITAS
Era cultura popular pura até que vieram os anos 1970 e tudo começou a mudar.
É uma característica urbana da velha cidade da Bahia: onde tem uma igreja há um largo em volta. Nesse entorno sempre acontece a chamada festa de largo, lado profano de eventos religiosos durante o verão. O ciclo original começa no final de novembro, com São Nicodemus do Cachimbo, o protetor dos trabalhadores do porto, e se fecha no Carnaval, em fevereiro.
Agora em dezembro tem Santa Bárbara, que é Iansã, a rainha dos raios e travões, homenageada com procissão e caruru; Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Bahia, com novena e procissão; Santa Luzia da fonte milagrosa em que os fiéis banham os olhos em busca de cura; e a virada do ano na Boa Viagem.
O auge das festas de largo de Salvador aconteceu entre os anos 1940/1960, como está muito bem registrado pelas artes plásticas, literatura, música, cinema e fotografia. Em todas as festas, a folia pagã acontecia nas barracas de comida, de bebida e de jogos, tudo misturado à poesia da roda gigante no parque de diversões. Era folguedo e brincadeira de trabalhadores, em barracas simples com mesas e bancos de madeira pintados com belos grafismos coloridos. Cada barraca tinha sua cor, seu desenho e nome próprio sempre criativo e original.
Serviam pratos populares, cachaça, cerveja e muita fruta de época que vinha de todo canto da Bahia. Era marca especial da festa da Conceição, cuja igreja fica bem em frente à Rampa do Mercado Modelo, onde atracavam os saveiros trazendo o colorido doce do Recôncavo, entre os vermelhos de melancias e pitangas, os amarelos de cajus, cajás e abacaxis, e os verdes das mangas de Itaparica e umbus do sertão. E todo mundo caia na chula, no samba de roda e capoeira, puxados no pandeiro, no berimbau, nas palmas, no gogó, no pé, no coração e na alma.
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Era cultura popular pura até que vieram os anos 1970 e a classe média invadiu a festa de largo, que virou “manifestação popular” com destaque no calendário turístico. A nova ordem atraiu artistas de todo o país, ganhou espaço na mídia e fama nacional. As mesas e bancos coloridos foram aos poucos substituídos por abomináveis cadeiras de lata ou de plástico com marca de bebida.
O samba de roda natural deu lugar à MPB pós-tropicalista, levada pelos estudantes universitários que tomaram conta da festa: eles se dividiam entre as barracas de Juvená e de Guanabara, as maiores e melhores, torcendo por elas como se fossem times de futebol. Nesse caminho o povão foi sendo escanteado, e sem o povo como protagonista a festa foi morrendo aos poucos - ou, pelo menos, trocando de cara e coração.
Hoje não se fala mais “festa de largo”; é ciclo de festa popular. Não se discute aqui se é melhor ou pior do que antes, não vem ao caso. Mas é outra festa, onde há de tudo e um pouco de cultura popular. Virou entretenimento e negócio. Para aumentar o faturamento, o calendário oficial incorporou eventos semelhantes realizados em outras localidades da Região Metropolitana de Salvador.
Hoje a Igreja segue com sua programação do jeito que sempre foi, entre novenas e procissões, mas nos largos e ruas em torno dos templos há uma nova realidade: quase não tem mais barraca; no lugar, arma-se um palco para os shows de cantores de axé, arrocha, pagode e sertanejo. Se der para enfiar um trio elétrico no meio, tanto melhor; o bicho pega, é o cão chupando manga. Em vez de festa religiosa, é a invenção do diabo sem as bênçãos de Deus.
Fotos de ADENOR GONDIM
COMENTÁRIO DO BLOGUEIRO.- Talvez discorde de um ou outro ponto, mas o texto reflete muito da minha decepção.
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