Práticas que se reproduzem e como o Recife é uma metáfora das cidades do Brasil
No Recife, uma cidade com déficit habitacional de mais de 70 mil moradias de acordo com o Plano Local de Habitação de Interesse Social de 2018, entre os anos de 2013 e 2023, foram removidas cerca de 1700 moradias de áreas pobres da capital pernambucana, muitas delas de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), sem reassentamento, apenas com indenizações por benfeitoria, de acordo com Nota Técnica 04/2023 realizado em conjunto pelo Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), a Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS), que integram a rede BrCidades, e o mandato do vereador Ivan Moraes (PSOL/Recife)[3], enquanto apenas 770 unidades habitacionais foram entregues pelo mesmo órgão no período. O que é ainda mais grave, segundo o estudo, é que 27% das indenizações pagas pela Autarquia de Urbanização do Recife foram inferiores a R$10 mil.
O instrumento da desapropriação garante ao Estado o direito de transferir compulsoriamente para si uma propriedade privada, em caso de utilidade pública ou interesse social justificado, desde que através do pagamento de indenização justa e prévia em dinheiro. Mas, em muitos casos, o que se vem observando não apenas no Recife, mas em todo o Brasil, sobretudo a partir da intensificação da urbanização desde a década de 1970, é a flexibilização das regras do uso desse instrumento, ou regimes de desapropriação diferenciados. Esse conceito, desenvolvido pelo sociólogo Michael Levien, foi utilizado por Fernanda Costa e Norma Lacerda no artigo “Zonas Especiais de Interesse Social: novas fronteiras de acumulação urbana?”, publicado recentemente no Dossiê ZEIS da Revista Brasileira de Direito Urbanístico[4], para explicar a pressão sobre as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) como mais uma fronteira no longo processo de liberação e valorização de terras urbanas a favor do mercado, liderado pelo Estado.
O artigo nos ajuda a entender o que a Nota Técnica nos mostra em mapas, que no contexto de cidades adensadas da atualidade, o mercado imobiliário estabelece áreas de interesse e atribui ao Estado a função de liberação de estruturas construídas (e não mais de terras ou de caminhos de valorização como há 40 anos) para serem destinadas diretamente para empreendimentos privados, garantindo infraestrutura e outros meios de qualificação urbanística dessas parcelas da cidade. A questão apontada é que, em muitas cidades, os territórios das ZEIS se constituíram em estruturas construídas cobiçadas, quando localizadas em áreas de maior dinâmica do mercado imobiliário ou de seu interesse para expansão.
De forma desproporcional a outras áreas da cidade, o Estado age nessas regiões para criar condições favoráveis à apropriação dessas estruturas construídas pelo mercado, nos processos de aquisição, licenciamento, regularização, incentivos fiscais, etc. Em outras situações (muitas vezes em paralelo), viabiliza recursos públicos para tornar ainda mais atrativo ao mercado essas áreas de seu interesse, implantando infraestrutura viária, de macrodrenagem, de lazer e liberando áreas de preservação permanente e interesse paisagístico. Na grande maioria das vezes, o caminho “mais lógico” para passarem essas infraestruturas ou exigir a garantia das áreas de preservação permanente são – apenas – as comunidades pobres, na maioria dos casos ZEIS, que conseguiram resistir devido à sua proteção legal. A remoção involuntária das moradias dessas comunidades, especificamente, é uma estratégia de gentrificação das centralidades, higienização das áreas valorizadas pelo mercado imobiliário, dentre outras injustiças socioambientais.
Nessas diversas situações de remoções de moradias, segundo a Nota Técnica citada inicialmente, para viabilizar os “processos administrativos” utiliza-se de um modus operandi, tomando como referência para isso os atributos revelados pelo professor Caio Santo Amore[5] que demonstram o curso desse processo no país como um todo. Segundo o professor da FAU/USP, alguns atributos semelhantes costumam ser empregados por poderes públicos de todo o Brasil em processos de remoção forçada, como um manual imaginário, segundo o qual visa “tornar a vida nesses assentamentos insuportável” a partir de (i) (des)informação; (ii) negociação/convencimento; (iii) (des)mobilização social e comunitária; e (iv) execução de obras.
Essas investidas para remoção de comunidades de baixa renda de áreas de interesse do mercado imobiliário tendem a tornarem-se ainda mais frequentes e justificadas, num contexto de reativação de investimentos públicos em infraestrutura, através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 3) e de programas de resiliência urbana baseados prioritariamente em infraestruturas de engenharia e remoções de moradias de áreas de risco. Isso se torna ainda mais grave quando verificamos que são as indenizações monetárias, muitas vezes restrita às benfeitorias, que têm sido a solução predominante e, na maioria das vezes, são incapazes de cobrir os custos reais de reassentamento em uma cidade onde o preço do metro quadrado só aumenta.
Em caso de real necessidade de remoção, que nem sempre existe, como mostra a parte final da Nota Técnica, a solução adequada seria o reassentamento dentro do mesmo território ou nas proximidades – chave por chave – mas essa alternativa padeceu de financiamento público na última década e esbarra nos altos preços dos terrenos nessas áreas. A reestruturação do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) cria expectativas mais otimistas, com as Faixas 1 e 2, o MCMV Entidades, MCMV Retrofit (áreas centrais), mas apresenta o desafio de possibilitar que sejam nessas áreas que esses empreendimentos serão edificados e que as entregas de unidades habitacionais se concretizam na mesma velocidade que as obras de infraestrutura impõem a remoção de moradias. Além disso, são enormes os passivos de provisão de moradia de habitação de interesse social que os municípios possuem, com grande número de famílias recebendo auxílio moradia, à espera de uma unidade habitacional.
Não é de hoje que soluções inclusivas e sustentáveis que garantam a permanência da população pobre em territórios encravados nessas áreas não são priorizadas, como não o são a vida e a história de quem neles habita, muitas vezes há gerações. Mas não é à toa, pois esse processo de liberação de terras urbanas (estruturas construídas), direta ou indiretamente a favor do mercado, se integra a uma estratégia maior de gestão urbana calcada na lógica do city marketing, que tem tomado expressão na gestão urbana no Brasil e se orienta pela criação de um ambiente propício na cidade para atrair investimentos privados. A cidade-empresa, conceituada por Carlos Vainer[6], nega o espaço da cidade como um território político e inclusivo, estabelecendo uma visão mercadológica que coloca o capital acima da cidadania.
Voltando para o Recife, não custa lembrar que há 10 anos o Movimento Ocupe Estelita já apontava o uso dessa prática ao afirmar que “o Recife inteiro é um grande Cais José Estelita”, denunciando os esforços também empreendidos pelo poder público a favor do capital imobiliário em outras áreas de interesse do mercado de imóveis na cidade, do mesmo modo que agira na viabilização do empreendimento imobiliário que ocuparia estratégica gleba pertencente à antiga RFFSA (no leilão das terras, na flexibilizações nos licenciamentos, entre outros) às margens do Cais José Estelita.
[1] Arquiteto e Urbanista da FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
[2] Advogada e Mestre em Desenvolvimento Urbano, sócia fundadora do Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH, Integrante da Secretaria Nacional do BrCidades e assessora parlamentar do mandato do Vereador Ivan Moraes (PSOL/Recife)
[3] Nota Técnica 04/2023, disponível em: NT Remoção de Moradias.pdf – Google Dri
[4] GONÇALVES, Norma Lacerda; COSTA, Fernanda Carolina. Zonas Especiais de Interesse Social: novas fronteiras de acumulação urbana?. Revista Brasileira de Direito Urbanístico – RBDU, Belo Horizonte, ano 9, n. 16, p. 35-62, jan./jun. 2023. DOI: 10.52028/RBDU.v09.i16-ART02 Disponível em: https://biblioteca.ibdu.org.br/index.php/direitourbanistico/article/view/829/616
[5] AMORE, Caio Santo. Assessoria em situação de conflito, ou: estamos em guerra! ATHIS para o direito à moradia / organizadores Margareth Matiko Uemura, Vitor Coelho Nisida, Lara Aguiar Cavalcante. – São Paulo: Instituto Pólis, 2021. p. 69 – 89.
[6] VAINER, Carlos. Pátria, Empresa e Mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. Disponível em: https://labcs.paginas.ufsc.br/files/2011/12/16.-VAINER-C.B.-P%C3%A1tria-empresa-e-mercadoria.pdf
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