quarta-feira, 12 de outubro de 2016

NEM TUDO ESTÁ AZUL...




CARLOS LINHARES


Com sua introdução no universo mudejar, a cultura sincrética de mouros convertidos ao cristianismo, ele passou a ser uma nova mídia da propaganda da fé. Virou cristão, expulsou os arabescos e passou a estampar narrações bíblicas e a hagiografia, isto é, histórias pias da vida dos santos. Mas no claustro franciscano houve um salto qualitativo, uma extraordinária criação artística: os painéis "midiáticos" do Teatro Mitológico contém uma ousadia que vai além, eles retomam a teologia cristã dentro de textos e alegorias da filosofia pagã. A intenção era pedagógica: promover uma cristianização das narrativas mitológicas, transformando-as em alegorias convergentes com a moralidade cristã.
                               NO CLAUSTRO DE SÃO FRANCISCO




O claustro inferior do convento de S. Francisco, no casco antigo de Salvador, é todo revestido de azulejos dispostos em 37 painéis com alegorias filosóficas e ilustrações mitológicas. É um espanto e um patrimônio inefável. É tudo muito estóico e remete ao universo pagão, nada há de bíblico ali, nem do Antigo nem do Novo Testamento, mas todas as lições dos emblemas éticos convergem com a moralidade cristã: consciência da impermanência e aposta nas virtudes e na filosofia como mestra da vida. O claustro contém um "Sermão de Azulejos" e sua instalação na Bahia data de 1746 e 1748, embora a fonte de sua inspiração tenha vindo da uma reedição dos desenhos originais do Livro de Emblemas, de Otto van Veen, ou Venius, ilustrador holandês, preceptor de Rubens, de 1669, chamada de Theatro Moral de la Vida Humana, serviu de lastro para a elaboração dos desenhos. Os originais foram desenhados em 1608, todos os 103 emblemas, com suas máximas admoestativas, dos quais os frades retiraram 37 para revestir as paredes do recinto sagrado.


Os azulejos (azuleisha) são peças valiosas da cultura persa e árabe que por séculos, paulatinamente, singraram o norte africano até alcançar a península Ibérica. Eram recobertos com arabescos porque Alá não admite no Alcorão a reprodução artística de figuras humanas e animais. Como tapetes de cerâmica, os azulejos repetiam sua função de adorno e piedade, de acordo com os cânones do universo muçulmano.

Há 20 anos faço giros no Centro Histórico de SSA com alunos e clientes de consultorias, descrevendo estas riquezas e fazendo pontes entre passado e presente na dinâmica cultural. Provavelmente, muitos dos que me leem aqui foram clientes de programas de Desenvolvimento de Lideranças ou alunos de MBAs e vivenciaram este circuito peripátetico chamado "Pelourinho, do olhar ao ver." Com tantos anos circulando, observo tristemente a degradação dos equipamentos históricos.

Recentemente tive a honra de palestrar sobre este artefato cultural, o azulejo, e seu estado de degradação, ao vivo, no claustro franciscano, na Semana Nacional do Azulejo, com especialistas do Brasil e Portugal. Na visita ao claustro todos os congressitas ficaram meio desolados. Fui como cientista social que ousa ver "o todo em uma pequena parte e uma pequena parte que reflete o todo." Mas deveria ter ido mesmo como psicoterapeuta. Afinal, baixou uma tremenda depressão e melancolia entre os participantes ante a decrepitude dos painéis e a colunata suspensa por horrendos tijolos. Somente lá eles mataram a charada do título de minha palestra: "Nem tudo está azul no claustro do S. Francisco." Nem lá, nem na preservação da memória artística e arquitetônica nacional. Reparem nas contenções de tijolos e nos espartilhos de ferro, abraçando as colunas do conjunto de 1750.
A obra emergencial foi feita há mais de 15 anos. Elas revelam o sintoma da falta de memória e o esquecimento.
Aliás, estamos experimentando há anos um Estado de Demência.

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