sexta-feira, 14 de outubro de 2016

SOCIEDADE DOS MENINOS

"A televisão desmontou a sociedade dos meninos"

Tatiana Mendonça
A educadora baiana Lydia Hortélio pesquisa cantigas e brincadeiras há mais de quatro décadas - Foto: Xando Pereira | Ag. A TARDE
Lydia Hortélio passou metade da vida espiando como os meninos brincam. É especialmente apaixonada pelas cantigas que entoam por diversão. Já registrou mais de 600 delas vindas de um único lugar, Serrinha, cidade onde nasceu. As partituras estão guardadas em casa.  "Não sei como faço pra viver 200 anos pra dar conta de tudo que botei aqui", ri, sentada na beira do seu quintal, em Salvador. O lugar também guarda mais de três mil brinquedos de vários cantos do mundo. Sua vontade inicial era construir uma Casa da Criança para abrigá-los, que depois rebatizou como Casa das Cinco Pedrinhas, para homenagear sua brincadeira favorita. Mas foi tanto plano feito e desfeito, tanta promessa de governo que não deu em nada, que Lydia está repensando essa ideia. "A Casa das Cinco Pedrinhas é no coração de cada um. Qualquer pessoa que tenha o sonho de buscar a criança dentro de si ou na sua ação no mundo é um membro desta casa". No início deste mês, a etnomusicóloga e educadora, referência em cultura da infância no Brasil, abriu a 9ª  edição do Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana (Fenatifs) para falar justamente sobre a "criança eterna". A dela mesma está vivíssima, aos 83 anos, e só um tanto ressentida de não poder andar por aí pulando corda, por uma birra dos joelhos. Para quem quiser segui-la, diz não ter receita, mas dá pistas. "É uma atitude de prontidão para o imprevisível, para o inesperado, para a descoberta".
A senhora falou certa vez que está correndo atrás de menino há mais de 40 anos. O que aprendeu com essa picula?
Ah, a ser feliz. Os meninos sabem. A não ser os mimados. A gente mima nossos filhos, nossos netos, e estraga os meninos. Mas eles são uma gracinha! Espontâneos, imprevisíveis, alegres, sinceros. 
A senhora sempre defende que criança precisa de contato com a natureza. Hoje nas grandes cidades quase não há mais quintais e nas escolas também falta verde. Como retomar esse encontro?
Imagine um país de oito milhões e 500 mil quilômetros quadrados, e os nossos filhos não conhecem a natureza! Deveria ser uma predestinação, não é, num país desse... Só as escolas que  Anísio Teixeira fez, essas têm até mata atlântica. Nem antes nem depois se fez igual. E os políticos ficam aí orgulhosos, dizendo que construíram não sei quantas salas de aula. O que a gente mais perde em nosso país são os nossos filhos. Mais do que o ouro da Serra Pelada. É uma pena. Mas tenho esperança. 
Hoje as brincadeiras das crianças são constantemente monitoradas por adultos. O que a senhora pensa disso?
Até na escola é assim. Há escolas que têm animadores no recreio. É equivocado. O brincar nasce da mais absoluta espontaneidade. Se um tinha a ideia de brincar de macaquinho, e você não tava a fim, dizia 'ah, não, vamos brincar de outra coisa', até o grupo encontrar o que todos queriam.  É uma obediência ao movimento interno. Os "educadores" não sabem o que fazer com a força, liberdade e criatividade dos meninos. Têm medo. Então ocupam os meninos. A brincadeira, quando conduzida, não acontece.  O que há ali é um momento de agitação induzido por alguém, e como o menino gosta de movimento, ele entra. Mas isso não corresponde à verdade da criança. Há um poeta alemão chamado [Friedrich] Schiller que diz o seguinte: "O homem só é inteiro quando brinca, e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra homem". Agora, há esse boom da educação infantil. Estão tirando os meninos do colo das mães para pôr na escola. Não sei o que um menino possa fazer que não seja brincar. Não sei como pode isso, nem sei o que a gente faz. Mas vou fazer até morrer. Hoje, só os meninos da roça  brincam. Sou de Serrinha e venho fazendo lá, desde 1969, quando voltei da Europa, pesquisa de música na zona rural. Foi lá que comecei a descobrir que existia uma cultura da criança e uma música dessa cultura.
E o que mudou desse tempo para cá?
Até os meninos da roça estão com os aparelhinhos na mão. Os pais gastam o que não têm para comprar aquele brinquedinho... É um caso sério, viu. Meus netos, na escola que estão, de classe A, não têm uma educação da sensibilidade, nem tem Brasil. Entram às 7h10 da manhã e ficam até 12h40 numa sala com ar-condicionado, em frente ao mar! Minha neta tem uma rinite alérgica que não passa. Eu já falei: tira da escola! Essa escola para competir, para passar na frente do  melhor amigo... Isso é um projeto de vida menor. A escola é a cara da sociedade que a gente construiu.  É uma sociedade do medo. Medo do desconhecido, do novo, de estar de mãos vazias.
No documentário Tarja branca, a senhora diz que está "pela revolução que falta, que é a revolução da criança". Como é que a senhora imagina essa revolução?
Menina, eu não sei (risos). Pra mim, tinha que fechar a escola! Plantar árvores. Não tô dizendo que não é para aprender. O menino é um ser aprendente. Mas ele quer fazer! Aí inventaram a escola mental. E ele quer transformar, experimentar com o corpo. Desconhecem o ser humano menino. Então, não sei como vai ser, mas olhe, vai quebrar, viu, porque é algo tão artificial... Nenhum de nós sentaria na escola hoje e suportaria. No meu tempo, ainda não era assim tão severo. A gente tinha um recreio longo e o nível da escola pública era ótimo... Em 2014, desenvolvi um projeto, que foi contemplado por esses editais do governo, e fui brincar em três escolas de Serrinha.
A senhora foi ensinar as brincadeiras do seu tempo ou foi conhecer as deles?
Fui conhecer se e como eles brincavam, e aí fiz um levantamento. No fim do ano, fui para um estúdio com eles e gravei esses meninos, os brinquedos ritmados. Céu e Terra / 51 / Cada vez sai um / Com a letra U A E I O U / Quem saiu foi tu no buraco do tatu (cantarola). As fórmulas de escolha, parlendas para pular corda...
Tinha ainda alguma música que a senhora escutava lá no início dos registros?
Não... Eu vou lhe contar. Minha história é comprida. Quando fui fazer a pesquisa pela primeira vez, descobri lá na roça em Serrinha os meninos brincando com uns brinquedos que eu não tinha brincado na minha infância. Eram outras cantigas. Por isso, resolvi...  Acho que Serrinha, minha terra, é o único município no Brasil... Não digo no mundo, porque a Hungria é o único país do mundo que fez um levantamento consequente da sua cultura popular. Desde o fim do século 19, Bela Bartók e Kodály começaram a levantar os brinquedos da infância dos meninos da Hungria e, até hoje, na Academia de Ciência de Budapeste, se faz isso. Então eles têm tudo que menino inventou na Hungria. E eu tive um professor húngaro que me contou essa história e me fez estudar o método de educação musical. Ele me disse: 'Pois é, e com vocês têm que ser diferente, porque em cada cultura os brinquedos são de acordo com a língua que se fala'. Aí que vem o poeta Fernando Pessoa e diz uma coisa maravilhosa: "A língua é a pátria". E a gente não sabe o Brasil. Por isso que está esse descompasso, porque a gente deixou de se cumprir, ficou olhando para Miami, para não sei onde...   Os maiores mestres que conheci na Europa diziam: vocês é que têm sorte, que ainda têm cultura popular.  A gente está vivendo esse momento desastroso por não querer o Brasil, não saber o Brasil. Você acha que esse intrujão que está na presidência da República já cantou alguma cantiga? Você vê na dureza dele que ele não tem nada de Brasil. É um bobo.
E esse acervo de Serrinha, desses anos todos, onde é que está?
Tá aqui em minha casa. Já tenho registradas mais de 600 cantigas só em Serrinha, que transcrevi em partitura. Não sei como faço para viver 200 anos para dar conta de tudo que botei em casa. O projeto era levantar 100 anos de música da infância de Serrinha. Me bateu aquilo na cabeça. E fui buscar os informantes. Tive uma tia, que faleceu com 103 anos, e um dia eu disse a ela: Tia, vou te botar na berlinda! Quero saber os brinquedos da sua infância. E ela: 'Ah, Lydia, deixe de maluquice. Você não tá vendo que não vou me lembrar?'.  Comprei um caderno, um lápis e uma borracha e dei a ela. Por muito tempo, abri esse caderno e nada. Aí uma noite, ela tinha vindo me visitar, acordei e vi uma luz acesa. Fui lá apagar e encontrei ela na mesa escrevendo. Ô, tia, está sem dormir?' E ela: 'Você, com suas cantigas! Quando vou pegando no sono, me lembro de uma'. Tirei 132 cantigas dela. Precioso. Quando ela fez 95 anos, quis fazer uma surpresa e fiz um disco dessas cantigas, que se chama Ô Bela Alice. Ela se chamava Alice e cantava um brinquedo que depois encontrei num curso que dei em Juazeiro. É assim: Ô Bela Alice / por onde tem andado. Pode ser qualquer nome. Ela aí tá no meio da roda e responde: Por onde eu andava / Passava muito bem / E melhor eu passaria se Tatiana fosse meu bem. E aí Tatiana vai para o meio da roda e ela vai para o lugar de Tatiana, e a roda torna a cantar. Então, ela foi do primeiro quarto de século, e eu do quarto de século seguinte. As minhas são 90 e tantos brinquedos, e não tinha uma cantiga igual! E no terceiro quarto de século,  também não. Mas, depois da televisão, o repertório diminuiu. A televisão desmontou a sociedade dos meninos. Os meninos ficaram desentonados por falta de uso da voz. Mãe nenhuma mais canta uma canção de ninar. Os meninos não têm a língua-mãe musical nos ouvidos deles.
A senhora abriu a 9ª edição do Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana (Fenatifs) falando sobre a criança eterna. A senhora conseguiu manter sua criança viva? Qual é a receita?
Não tenho receita, mas, não sei por que, gosto muito da vida. Tenho, desde menina, uma propensão natural de ficar alegre. Então... Não tenho dificuldade nenhuma de brincar até hoje. Naturalmente que não vou pegar uma corda e ficar aqui pulando, mesmo porque meu joelho não permite... Mas é uma atitude de prontidão para o imprevisível, para o inesperado, para a descoberta.
E como está hoje a Casa das Cinco Pedrinhas, esse sonho antigo seu?
A Casa das Cinco Pedrinhas é um sonho que começou quando eu ainda vivia na Alemanha. Meu namorado, que conheci lá e depois viria a ser meu marido, viajava o mundo inteiro tocando e sempre me trazia uma mala cheia de brinquedos. Com isso, a coleção foi crescendo. Quando vim para o Brasil, trouxe a coleção num contêiner, junto com meu piano, para fazer uma Casa da Criança na Universidade da Paraíba. Quando cheguei, houve uma mudança na direção da universidade. Foi o ano do AI-5. Veio um coronel para ser reitor e ele não entendeu nada, nada... Aí queriam que eu ficasse dando aulas de piano, e eu não quis. Larguei um emprego de dedicação exclusiva, com salário alto... Vim para cá com uma mão na frente e outra atrás. Aí comecei a andar pelos festivais de inverno de Minas Gerais, onde havia oficinas de brinquedo, e lá conheci Antônio Nóbrega. Ele me chamou para começamos um curso de formação de educador brincante. Estivemos para fazer a Casa das Cinco Pedrinhas aqui, no governo de ACM, mas ele desistiu. Depois [Gilberto] Gil, quando era ministro da Cultura, tentou levar adiante a ideia. O sonho passou a ser em São Paulo, mas ficou no caminho também. Então pensei: ah, não quero mais fazer casa nenhuma. A Casa das Cinco Pedrinhas é no coração de cada um. Qualquer pessoa que tenha o sonho de buscar a criança dentro de si, ou na sua ação no mundo, é um membro da Casa das Cinco Pedrinhas. Porque o lugar é dentro. A gente tem que se voltar para cá (aponta para o coração). E se a gente não se voltar para dentro, e se inspirar nesse menino que a gente foi e é, não acontece nada fora. É tudo exterior, é tudo cosmético. Então nós estamos mudando de espécie. Aí que é a história.

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