quarta-feira, 6 de junho de 2018

RACISMO E A INFLUÊNCIA NEFASTA DOS EUA

ANTÔNIO RISÉRIO

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O "caso" Fabiana Cozza levou o jornalista Jan Niklas, de "O Globo", a projetar uma matéria passando em revista a questão racial brasileira. Dei uma entrevista a ele sobre o assunto, ontem de manhã. À tarde, a pauta foi deslocada para o "colorismo". A matéria saiu hoje, ainda não li. Mas, para não jogar a entrevista no lixo, reproduzo a seguir o que foi perguntado e respondido:

ENTREVISTA JAN NIKLAS JENKNER / O GLOBO


- Em que pé está o debate sobre racismo e a identidade racial no Brasil hoje? Avançou?

R: Caminhamos do mito da democracia racial para a fantasia do racialismo neonegro. Ou seja: substituímos uma construção ideológica falaciosa por outra. O problema todo está em torno da mestiçagem: nenhuma importação ideológica norte-americana vai fazer com que o Brasil deixe de ser um país mestiço. O problema do racialismo é sua confusão entre o genético e o ideológico. Houve uma leitura senhorial da mestiçagem no passado. Ao invés de demolir essa mistificação e encarar objetivamente a mestiçagem, nossos racialistas escolheram o caminho mais fácil: importar o binarismo racista norte-americano, decretando a inexistência de mestiços. E não nos esqueçamos de que os EUA são uma anomalia planetária: o único país do mundo que não reconhece a existência do mestiço de branco e preto. Claro que isso só podia gerar distorções imensas. Temos de pensar o Brasil olhando para nós mesmos. Pensar o Brasil por nossa conta e risco.

- Conceitos como colorismo e branquitude são cada vez mais usados nos debates sobre raça no Brasil. O que acha da aplicação desses conceitos ao nosso contexto racial?

R: Os brasileiros sempre se viram e se pensaram em termos de cor. Os norte-americanos, em termos de “raça”. Querer enfiar a multiplicidade cromática brasileira na camisa de força do dualismo norte-americano só pode gerar leituras e posturas estrábicas. Afora isso, temos agora as fantasias autoritárias dos movimentos identitários (que, ironicamente, nasceram em consequência de lutas democráticas pelo respeito ao outro e à diversidade – e hoje, depois que se firmaram, recusam justamente o outro e a diversidade). O identitarismo é o velho marxismo, substituindo as classes sociais por sexo e cor. Pior: se você não acredita que o sexo e a cor expliquem tudo, você é machista, racista, fascista. Chegamos a esse ponto. E esses identitários, para não precisar pensar, criam grandes e estáticos arquéticos: o Macho, o Branco. Eles são como aquele monólito do “2001” de Stanley Kubrick: tudo se transforma na história, na sociedade e no mundo, menos o Macho e o Branco, que são os mesmos há séculos e assim permanecerão por toda a eternidade. O Macho figuração do machismo, o Branco gerando a branquitude. Quanto ao “colorismo”, os racialistas neonegros sempre gostaram de exagerar ao extremo a relação entre cor da pele e situação social. Fazem de conta de que não existe outro fator, mas existe. Os mulatos, de Luther King aos brasileiros, sempre tiveram um nível de qualificação educacional/profissional superior ao dos pretos mais pretos. Absolutizar a cor é fechar os olhos para a realidade sociológica. Mas o fato é que esses racialistas/identitários absolutizam, acham que a cor explica tudo. Prova viva do peso do fator educacional é Joaquim Barbosa, mulato bem escuro.

- O discurso freiriano do brasileiro mestiço como modelo racial de boa convivência e entrelaçamento entre “diferentes” ainda sobrevive no Brasil? Como vê esse discurso hoje no país? O que ainda perdura e serve( (ou não) para explicar nosso histórico racial?

R: Freyre é um clássico, não um leitor atual do Brasil. Há um aspecto importante que raramente é lembrado. Freyre publicou “Casa-Grande & Senzala” em 1933. Ou seja: fez o elogio da mestiçagem no momento mesmo em que o nazismo chegou ao poder na Europa, com seu discurso ferozmente antimestiço, que levaria os judeus aos campos de concentração. Isso é altamente relevante como postura brasileira no horizonte internacional. De outra parte, é evidente que o olhar de Freyre, por mais rico que seja, é o olhar do senhor de engenho. Então, a leitura de Freyre tem de ser corrigida com a leitura de Florestan Fernandes. Mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Não exclui o conflito, nem mesmo o antagonismo. Mas também não devemos nos esquecer da lição de Florestan, quando ele diz que a construção de uma democracia sem barreiras étnicas ou sociais é o ideal mais elevado que uma coletividade pode propor a si mesma.

- Como se define na prática quem é negro, pardo e branco no Brasil?

R: A olho nu. Na verdade, nem uso a palavra “pardo” e acho sintomático que se queira agora arquivar a expressão que os brasileiros tanto usam: “moreno”. Se introduzirem o item “moreno”, num levantamento censitário no Brasil, a maioria da população vai se definir assim... O problema todo é querer enquadrar nossos cromatismos na “one drop rule”. Então, essa classificação acaba dependendo do classificador e de seus interesses na ocasião, como vemos no caso das “cotas raciais”. Os racialistas defendem que quem tem uma gota de sangue negro, é preto. Mas não têm como sustentar isso. Então, uma é a teoria, outra é a prática. A “one drop rule” vale na hora de dizer que a maioria da população brasileira é preta, mas não vale na hora da disputa de vagas na escola ou no trabalho. O campo fica aberto para todos os oportunismos. Por falar nisso, o Brasil hoje é um país de grandes fraudes estatísticas, alimentadas também pela mídia. A grande população cabocla da Amazônia, de ascendência indígena, vira parda – e, como parda, vira preta, graças a um uso mais maluco ainda da já maluca “one drop rule”. Mas a verdade é que somar pardos e pretos para dizer que a maioria da população brasileira é negra, corresponde tanto aos fatos quanto somar pardos e brancos e dizer que a maioria é branca.
- Existem hierarquias sociais dentro da própria classificação da negritude como estão sendo debatidos no caso de Fabiana Cazzo? Negros de peles mais claras possuem vantagens sociais em relação aos de pele mais escura?
R: Isso é bem visível nos Estados Unidos. A burguesia negra norte-americana é mulata e é racista. Veja-se um estudo como “Our Kind of People: Inside America’s Black Upper Class”, do negro norte-americano Otis Graham. Ele mostra em detalhes o olhar de desprezo com que a burguesia preta de pele clara olha os pretos mais escuros e os mais pobres. A vanguarda política negra, nos EUA, sempre foi principalmente mulata. Martim Luther King era mulato, neto de avó irlandesa. E era protestante (não existem orixás nos EUA), veja o nome dele: Martim Luther = Martinho Lutero... No Brasil, historicamente, foram também os mulatos que ascenderam socialmente – e de maneira notável – já desde os tempos do império, especialmente, com Pedro II. No tempo dos “panteras pretas” (“black” deve ser traduzido por “preto”), os mulatos foram vítimas de recusa e preconceito por parte dos pretos mais pretos. E isso chegou também ao Brasil. Em todas as frentes. Vejam o preconceito com que Abdias do Nascimento fala dos mulatos. E o caso de Fabiana me fez lembrar que outra cantora, Margareth Menezes, foi impedida de desfilar no Ilê Aiyê, na Bahia, na década de 1970, por não ter sido considerada suficientemente preta...
- Em linhas gerais, qual o peso do fator racial na hora dos indivíduos se inserirem socialmente no Brasil hoje?
R: Já pesou demais no passado. Mas as coisas mudam – e têm mudado muito. Hoje, o peso é menor. Os racialistas não vão admitir isso, porque, como movimento, eles precisam de reafirmações diárias de racismo para sobreviver. Mas hoje, em lugares como o Rio e a Bahia, pelo menos, o que mais pesa, na hora da inserção, é o fator educacional. O grande problema brasileiro é a desigualdade de oportunidades – e o que pode transcender isso é a educação.

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