Mais cedo postei sobre o arerê dos fãs cobrando Ivete Sangalo sobre determinadas omissões ou não posições. Vários amigos comentaram e um deles, Mauricio Coutinho, fez a voz contrária. Inspirado na provocação dele, muito bem vinda e oportuna, resolvi estender um pouco mais meus palpites sobre o assunto.
Ivete é artista e profissional da música, forma artística que mais se beneficiou, ao lado do audiovisual (este nascido já sob as benesses da tecnologia), das irrupções técnicas e comunicacionais que revolucionaram o mundo nos últimos 150 anos, tanto que se converteram em indústrias culturais, com lógicas, comércios e modos de produção absolutamente distintos e muito acima das demais expressões artísticas.
A conjunção entre comunicação de massa, novas mídias e plataformas radicalizou tanto a forma de produzir quanto de consumir música. Sim, eu falei consumir, porque é desse lugar - consumidor - hibridizado com tantos outros (admirador, apreciador, seguidor, etc) que muitos dos que se vinculam a artista se colocam e falam.
Ivete, para muitos deles, é também um produto e como tal, esperam que correspondam às suas expectativas de consumo, sejam oferecendo a experiência musical que desejam, sejam agindo, performando, existindo, como ícone que lhes oferece uma idealização de vida (de artista) para ser consumida igualmente.
Por outro lado, existem maneiras e maneiras de se fazer artistas e carreiras nesse mundo de agora. Há os que pouco ou nada expõem das suas vidas privadas (alguém sabe qual a cor do cabelo do filho de Marisa Monte ou se o sofá da casa de Djavan é estilo capitonê?) e há os que editam e compartilham entretrechos de suas vidas privadas como parte da constituição do capital de imagem (ou dizendo de outro modo, outras parcelas do produto a ser consumido).
Quando Ivete mantém uma conta ativa no Instagram e dela publiciza tanto imagens de suas performances artísticas quando de sua vida em família ou de bastidores de sua carreira, ela está buscando estabelecer uma relação com o público que extrapola os limites da cena musical para se tornar algo ou alguém a ser consumido em outra escala. Ela oferece, como tantos artistas da atualidade, um portfólio de experiências que constituem o cardápio servido ao público na perspectiva/expectativa de fidelização.
Inteligente como é, Ivete tem investido, desde que passou a ter carreira solo, na construção de seu capital de imagem. Ela tem consciência que possui um carisma fabuloso que a coloca como uma das melhores influenciadores em atividade nas janelas e vitrines contemporâneas. Ela sabe do poder que tem de estabelecer proximidade com seus públicos, que a recebem e a absorvem como alguém que fala com eles, porque ela se comunica com tal potência e modulação. Ivete é bróder, em bom baianês. Por isso o mercado publicitário é fascinado com ela. Por isso ela vende “de um tudo”.
Em toda a carreira, Ivete tem circulado e aparecido sempre festivamente com políticos de todos os matizes. No carnaval, já saudou de Wagner a ACM Neto do alto de seu trio, sempre naquele jeito camarada mas, cirurgicamente, sem se comprometer, num cuidadoso discurso de "sou coleguinha de todo mundo mas não tenho lado”. Olhando de fora, parece que ela tem buscado com obstinação não exercer o lugar de alguém que tem posições políticas. Portanto, nada a dizer sobre isso aos seus e todos os públicos. Uma escolha asséptica. Diria mais, talvez anódina e pueril para 2018...
Ocorre que a tsunami das redes sociais nas nossas sociabilidades não tem respeitado tais fronteiras. TUDO MUDOU para as pessoas, as relações, os públicos, as notícias, as janelas, os consumos, os artistas e os mercados. Não basta o artista mostrar seu sofá numa matéria da Caras. O público, mesmo sem ter lido O Capital ou O Príncipe, politizou-se. Falar de política e de suas agendas no Brasil e no mundo tornou-se acessível felizmente a toda gente. Portanto, a nova intimidade e experiência a ser compartilhada está revestida de outros sentidos. Públicos querem saber o que artistas pensam sobre desmatamento, feminicídio, direitos LGBTs, conceito de família, aquecimento global, racismo, aborto, identidade, gênero, violência, maioridade penal, desarmamento, distribuição de renda, etc e o escambau, pois dessas posições ou, ao menos, opiniões, podem localizar o artista na leitura ideológica que fazem do mundo. Não que a sociedade esteja suficiente intelectualizada para discernir com segurança e consistência sobre liberalismo, esquerda, direita, campo progressista ou qualquer forma pela qual convencionamos localizar o que somos e que mundo queremos no espectro ideológico da política.
Mas do jeito abrasileirado e, muitas vezes, mal informado, passamos a palpitar e discutir política, logo nossos ídolos não estão fora dessa demanda que, de resto, não é nenhuma novidade. Na campanha de 1989, os artistas que cantaram “Lula Lá” contavam-se as dezenas enquanto as apoiadores de Collor cabiam num Fusca (Tereza Rachel, Claudia Raia, Marilia Pera). Entre aqueles muitos e estas gatas pingadas, outros tantos muitos não se comprometeram, gozavam de uma tradição de que o artista tem o direito a não ter ou não enunciar posição política. Havia até quem viesse em socorro do artista e endossasse que sua arte deveria falar por ele e pronto.
Porém, parece que o prazo de validade desse maneira de existir artisticamente esteja em vias de se extinguir. Talvez Ivete descubra que, mais do que mostrar fotinha fofa das gêmeas vestidinhas de branco para serem batizadas, seus fãs queiram saber que mundo a cantora deseja para suas filhas em termos de direitos das mulheres.
Arrisco dizer que a fatura vai chegar e que seus impactos virão quando Ivete perceber que seus fãs poderão não estar mais tão docilmente à fim de que ela apenas lhes mande sair do chão...
Edit1: Gosto imenso do talento musical de Ivete, não curto muito seu repertório acessível mas sei que ela tem material vocal e inteligência musical para fazer coisas estupendas. O disco dela com Caetano e Gil é primoroso. Todo músico que toca com Ivete sabe que está lidando com uma artista musicalmente elevada. Portanto, as opiniões aqui se atém ao fenômeno e não ao talento da artista, para mim indiscutível.
Edit2: Não sou autoridade para dizer se ela agiu certo ou errado mas exerço modestamente meu direito de opinar que a decisão de silenciar tem seu preço e suas implicações.
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