Ordep Jose Trindade Serra
Há pouco concluí a leitura de um artigo de Douglas Rushkoff intitulado "Survival of the Richest". Este texto dado a público na Medium Magazine me trouxe um maior esclarecimento sobre o que pensam os poderosos regentes do sistema-mundo, os príncipes das altas finanças, mas também me causou um sentimento de horror. Rushkoff conta que no ano passado foi convidado a fazer uma conferência sobre tecnologia digital de ponta, sua especialidade, para um grupo seleto, em um resort dos mais luxuosos. Confessa que aceitou o convite motivado pelo pagamento, uma soma equivalente à metade de seu ganho anual como professor da Princeton University. Imaginou que seu público seria composto por uma centena de banqueiros, mas na sala de conferências a que foi conduzido havia apenas uma mesa redonda em volta da qual reuniram-se a ele cinco homens riquíssimos, do alto escalão do mundo restrito dos fundos hedge. Era sua audiência.
Como Rushkoff logo percebeu, esses ouvintes não estavam interessados exatamente no tema que ele havia se preparado para expor-lhes ("o futuro da tecnologia"). Depois de vagas perguntas sobre a efetividade da computação quântica e sobre a escolha mais recomedável entre as moedas digitais Ethereum e Bitcoin, os cinco magnatas começaram a abrir o jogo, revelando suas verdadeiras preocupações. Indagaram logo qual seria a região menos impactada pela crise climática cujo agravamento reconhecem iminente ("Nova Zelândia ou Alasca?"). Depois, quiseram saber se estava mesmo sendo cogitada a transferência futura do cérebro de Raymond Kurzweil para um aparelho capaz de garantir-lhe sobrevida (ou vida nova). Por fim um CEO de uma corretora contou-lhe que havia quase concluído a construção de seu sistema subterrâneo de abrigo e perguntou-lhe como faria para manter a autoridade sobre sua força de segurança após "o evento". Rushkoff não demorou a entender o que seus riquíssimos interlocutores designavam por este eufemismo, "o evento": o desastre ambiental definitivo, a convulsão social extrema, a possível explosão nuclear, a babel que podem promover ataques de hacker-robôs. A ruína do mundo, em suma. Essa catástrofe esperada com fria ceteza era o assunto que os interessava: queriam saber como escapar, que saídas podem ter após o deflagrar-se do "evento". Previdentes, já planejavam contar com guardas armados a fim de proteger seus bunkers das multidões enfurecidas; mas debatiam-se com um problema: como pagar a esses seguranças, se no curso do "evento" e depois dele o dinheiro não terá valor algum? Como impedir que essas milícias escolham seus próprios líderes?
Os cinco ansiosos ricaços cogitavam até de impor aos seus futuros guardas o uso de coleiras providas de algum controle eletrônico, em troca de garantias de sobrevivência no day after. Queriam prover-se, também, de fechaduras com segredos só a eles mesmos acessíveis, a fim de garantir a proteção de suas reservas de comida. Melhor ainda, sonhavam com robôs capazes de funcionar como guardas e servos - e indagavam ansiosos se essa tecnologia poderá ser desenvolvida a tempo, deixando claro que esperam para muito breve "o evento". O interesse deles pelo "futuro da tecnologia" cingia-se a essas questões e outras de teor semelhante, como a viabilidade da colonização de Marte (um possível refúgio), ou a de inverter o processo de envelhecimento, ou a encarecida possibilidade de inserir suas mentes em supercomputadores, conforme o programa idealizado por Sam Altman e Ray Kurzweil.
Prontamente Rushkov percebeu que o interesse de seu seleto auditório pelo futuro digital nada tinha a ver com a ideia de tornar o mundo um lugar melhor. Em vez disso, era sua aspiração transcender a condição humana e fugir isoladamente ao perigo (já atual ou bem próximo) das mudanças climáticas, do aumento do nível do mar, das migrações em massa, das pandemias globais, do pânico universal, do esgotamento de recursos da Terra. Em suma, eles pensam na tecnologia avançada como um meio de fuga, um jeito de escapar ao desastre, transcedendo a condição humana, livrando-se do corpo frágil, superando as travas da interdependência, da compaixão, da vunerabilidade, da complexidade, da solidariedade. Como bem advertiu Rushkoff, suas perguntas ansiosas transpareciam o que filósofos da tecnologia vêm dizendo há muito: confirmavam o triunfo de uma visão transhumanista que reduz toda a realidade a dados e leva a encarar homens e mulheres como meros objetos processadores de informação. Ficou evidente para o assombrado conferencista que essa ideologia inspira hoje multimilionários a ver-se como os vencedores do grande desafio pós-moderno da sobrevivência dos mais aptos.
Rushkoff então deu-se conta de uma triste viragem: em lugar das esperanças suscitadas na sua origem pela revolução digital, em vez do ensejado emprego dessa nova tecnologia para a criação de um futuro mais inclusivo e igualitário, ocorreu outra coisa: deu-se-lhe outra meta, de sentido oposto. Ou seja, a insaciável gana de lucro do establishment impôs rumo bem diferente ao novo processo técnico, que fez voltar-se para uma exploração descontrolada, ora em vigor no mercado global. Assim, no novo horizonte o futuro deixou de ser alvo de projetos, aspirações e escolhas da humanidade: converteu-se no pasto de um mercado de risco de cujo funcionamento se excluiu toda a ética. Nesse quadro, o desenvolvimento tecnológico, em vez de orientar-se pelo florescimento coletivo, cingiu-se ao empenho de privilegiados na busca de sobrevivência individual.
Segundo Rushkoff lembra no citado artigo (e é fácil ver por toda a parte), os impactos mais devastadores do novo capitalismo digital recaem sobre o meio ambiente e sobre os pobres do mundo. A mineração de metais raros e o descarte não controlado de peças das tecnologias digitais está a converter habitats humanos em depósitos de lixo tóxico, com frequência recolhidos por crianças, camponeses reduzidos à miséria (badameiros, lumpens) que vendem os materiais utilizáveis de volta aos fabricantes. As consequências ambientais e econômicas de tal exploração desenham para o futuro um quadro ameaçador. Mas em vez de lidar seriamente com essa ameaça, a falsa elite que manda no mundo adere hoje a uma perspectiva em que a condição humana é considerada um problema. O grupelho dos super-ricos admite a hecatombe da população, encara o corpo como máquina truncada por deficiências graves (falhas que o tornam perecível) e busca a tecnologia como solução para corrigir esses defeitos em benefício exclusivo de pouquíssimos, isto é, deles mesmos. Segundo revelaram ao espantado perito, os bilionários sonham sobreviver em uma bolha, em outro planeta, após a destruição da Terra (catástrofe que eles mesmos estão promovendo) e se preparam para a fuga.
Na verdade, como bem lembrou Rushkoff, não precisamos usar a tecnologia em questão de modo tão antissocial. Mas é essa a perspectiva dominante entre os poderosos super-ricos.
O sonho deles me horroriza não só pela indignidade manifesta de um egoísmo levado ao extremo, não só por sua mesquinha covardia, mas também pela estupidez de seu desiderato. Que triste sobrevida querem eles, como o transplante de suas miseráveis consciências para máquinas muito mais duradouras que seus corpos, quiçá eternas? Que farão ilhados em bolhas tediosas, onde terão de suportar a si mesmos (a pior das companhias) por tempo indefinido? Que desgraçada imortalidade será essa!
Ao ler o relato de Rushkoff lembrei-me de um poema terrível. Pensei logo no sexto círculo do inferno imaginado por Dante Alighieri: o círculo onde infelizes pecadores jazem, para sempre vivos, em sepulcros inflamados. A meu ver, a analogia se impõe. Frios sepulcros querem para si os horrendos sonhadores que comunicaram a Rushkoff sua triste utopia. Eles já se mostram sepultados nos seus egos mesquinhos e tudo quanto conseguem sonhar é a eterna permanência nesses jazigos imundos. Com franqueza, considero o futuro a que eles aspiram muito pior do que a morte: um futuro que faz a morte afigurar-se uma bênção.
Mas o testemunho de Rushkoff traz ainda um esclarecimento espantoso: os grandes magnatas das finanças têm plena consciência de que estão arruinando a Terra, conduzindo a humanidade para uma catástrofe hedionda, destruindo a biosfera terrena, acabando com a vida no planeta. Prevêem o desespero das multidões rebeladas quando a miséria absoluta se fizer universal e já procuram jeito de escapar à fúria da massa desgraçada, guardando suas reservas (feitas às custas do resto da população), com apelo a seguranças controlados por meio de coleiras eletrônicas, ou com recurso a robôs.
É para a classe média imbecilizada que esses potentados pregam o progresso indefinido, o eterno paraíso do consumo. É aos idiotas acostumados a idolatrá-los estupidamente (com a fútil esperança de ser aceitos na sua vizinhança) que os barões da elite financeira destinam o evangelho dos irmãos Koch, segundo cuja pregação falaciosa "os ricos sustentam o mundo". À malta dos babbits que assim levam da mediocridade à mais boçal estupidez eles destinam as hábeis sereias dos Bannons, as prédicas dos papagaios roucos de Mises, as lições dos apóstolos do neoliberalismo, gostosamente financiados por suas espórtulas. Querem mais é que se propague a cantilena das religiões do sucesso, de cujos pregadores eles se riem. Os super-ricos não acreditam nessas bobagens, não mordem a isca que encomendam. Sabem muito bem o que estão fazendo. E sabem perfeitamente que para fazê-lo com tranquilidade precisam enganar os trouxas. Enquanto isso, antevendo a catástrofe que estão a provocar, projetam a fuga com a mais sórdida e despudorada covardia.
E depois tem quem diga que a Nova Ordem Mundial é lenda urbana.
ResponderExcluirGrande Dimitri. Li este artigo no status de Ordep. Parabéns por tê-lo transcrito no seu blogue.
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