Fora as aulas de literatura e redação, fui um péssimo estudante. Nunca gostei de colégio. Em contrapartida, como era prazeroso andar desde a calle Espartinas até o Liceu francês de Madri, logo após a Castellana, comendo cerejas compradas nos ambulantes! Em 1953, o bairro de Salamanca já era o discreto reduto dos afortunados deste mundo. A Espanha saia de uma terrível guerra civil e podiam ver-se marcas de bala em muitas fachadas. O povo era de uma pobreza cinzenta, a maioria andando de alparcatas de lona e corda, mesmo na neve derretida e suja de dezembro.
Com
frequência, atravessava o jardim do Retiro até o museu do Prado. O acesso não
era gratuito, mas poucas pesetas bastavam para penetrar num mundo mágico de silêncio
e tesouros.
Os trágicos e
floridos banquetes de Boticelli, a felicidade nas tapeçarias de Goya, o olhar
distante da Dama de Elche, os retratos sem alegria de Velazquez, as luzes
minimalistas de Zurbaran penetravam até saturação na minha retina sedente de
beleza absoluta. Saia de lá embevecido.
Foi em Madri
que vi e ouvi Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, Duke Ellington e Josephine
Baker, como também foi na capital espanhola que, assistindo ao London Festival
Ballet, entrevi o rosto luminoso de Amália Rodrigues. Minhas falhas
escolásticas seriam, por vias indiretas, fartamente compensadas.
Não esperei o fim do ano letivo. Mais importante era conhecer
Toledo. Quando você for, vá de trem. A estação ferroviária na chegada, em
estilo mudéjar, já é um monumento. O Alcazar não passava de um amontoado de
ruínas. Brancas ruelas de barro achatadas pelo sol. Encontrei uma modesta
pensão com forte cheiro a azeite mal refinado. Um quarto a la Van Gogh. Cama,
mesa, cadeira. A comida? Quem, aos dezessete anos, se preocupa com comida?
Tinha fome de descobertas. Em vez de dois dias, fiquei cinco. Da terra onde El
Greco Doménikos Teotokópoulos escolhera viver, dizia-se “Um passado ilustre, um
próspero presente e um futuro incerto”. No momento de minha estadia estava
Toledo mais para presente incerto.
O “Guide bleu” - 732 páginas em papel bíblia - detalhava o acervo de cada museu, cada altar
de capela. Obediente, levava a sério minha condição de visitante. Foi assim que
entrei numa antiga mesquita transformada em igreja e me sentei em banco desconfortável,
sozinho, parca luz de velas, para mergulhar na dor dos familiares e amigos do
conde de Orgaz que estava sendo enterrado naquele momento. Na adolescência, a
realidade e o fabuloso ainda não têm fronteiras muito formais. Foi-me fácil
penetrar na multidão do funeral, algures entre a matéria e o éter. O tempo
suspenderia seu voo até sair do imenso quadro, me levantar e reencontrar a
brancura da luz e o calor de junho.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde, sábado 31/10/20
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