quinta-feira, 8 de julho de 2021

O PUTSCH DE ARGEL

 


O quartel entrou em rebuliço. Nossa arma é dos Transportes, mas na realidade é uma tipografia onde toda a papelada da “luta contra a subversão” é impressa. O rádio calou. Ou foi cortado. Estamos sem luz. Grupos de militares conversam em voz baixa na escuridão. Na cidade, lá embaixo, a noite, tão absolutamente silenciosa quanto foram barulhentas às últimas horas do dia, transpira tensão e angústia.

Na data histórica do 21 de abril de 1961, um quarteto de generais baseados em Argel, declarou que a Argélia continuaria francesa, mas independente (sic), e isto apesar da política oficial do governo francês. O discurso do General De Gaulle divide as opiniões. Já dividiu a França, quase em estado de guerra civil. Cada um de nós se sente implicado no futuro de dois países. E agora? Que vai ser dos dias seguintes?

 

Tenho 22 anos e, até esta tarde, vivi numa agradável e sorridente alienação política. Claro, sempre achei bens preciosos a liberdade, a justiça social etc., mas quem sou eu para mudar os rumos da humanidade?

Neste exato momento, debaixo da Via Láctea, um jovem ex-estudante preguiçoso e mundano vai perder, de repente, sua virgindade ideológica.

Como e por que estranho mecanismo intelectual palavras emocionadas se atropelam ao sair sem ordem de minha boca? Estaria incorporado por algum espírito desconhecido? Levanto a voz sem refletir. Ah! Se refletisse um pouco antes de falar e me meter em situações absurdas!  

Proponho sabotar as decisões do comando do quartel. Outro soldado, certamente com maior maturidade política, apóia meu discurso com coesão. Juntos, começamos a elaborar estratagemas.

Tudo na maior escuridão. Ninguém sabe ao certo quem está falando.

De repente, a voz empostada de quem está acostumado a dar ordens “Soldado Ganzelevitch! Logo você, que sempre deixei livre para ter um quarto na cidade, que nunca passou uma só noite no quartel! Você, um pied-noir!”

Pied-noir é quem nascera francês nas colônias do norte da África. E, logicamente, com definida opção política. Pied-noir tem que ser colonialista e reacionário com tendência fascista. Então, os jogos estão feitos. Além de traidor, oposição serei. Oposição à loucura impensada de um punhado de oficiais superiores que não mediu as conseqüências de suas opções.

Respondo ao comandante. Com certeza foram palavras homéricas, algo como “Independência ou Morte” ou “Basta de tanto sofrer!”,  a mão no peito, alguma frase que, um dia, será repetida nas aulas de História... Sem mais o que deliberar, vamos dormir, esperando o amanhecer para concretizar nossos planos.

 

O dia ainda não se declarou quando uma patrulha de paraquedistas da vizinha Tipaza vem, com dois caminhões, me prender. Virei perigoso terrorista. “Ah! Uili-uili-uili” dizem as mulheres árabes quando se lamentam. Que fazer senão subir no fundo de um dos caminhões, enquadrado por militares com cara de poucos amigos? E agora? Que vai ser de minha vida? Eles, tipo skin heads, têm o hábito nefasto de torturar e matar sem piedade os argelinos subversivos. Suponho que, no mínimo, irei passar por momentos desagradáveis. Bem, será o que Deus quiser...

 

Argel está paralisada por causa das manifestações pro “Algérie Française” que enchem ruas e sacadas com buzinadas e panelaços. Começo a ficar realmente preocupado com meu futuro imediato. De repente, antes mesmo de pensar, aproveito uma confusão do engarrafamento para pular por cima dos militares, saltar do caminhão e desaparecer na multidão.

Apesar de ter longas pernas, nunca fui bom corredor, mas, naquele dia, pulverizo com certeza todos os recordes olímpicos. Até o ano 2021!

No meu quarto, troco em segundos o uniforme para ter uma aparência mais civilizada e desço, sempre correndo - milagre da juventude - as ladeiras até o porto. O último navio com os recrutas que terminaram seu tempo vai zarpar. Os pára-quedistas, eles de novo, formam barreira. Não passarei. Volto a meu refúgio.  Desta vez não mais correndo, mas voando. De novo a farda, de novo o porto. A passarela vai levantar. Escolho outra abertura no cordão de isolamento, invento um pretexto. O militar me pede para ir rápido e regressar sem demora.

Sou o último a subir a rampa salvadora. Meu coração bate como se fosse romper contra o peito, pronto para explodir. Respiração gelada apesar do suor. Nunca me meti em parecida loucura.

E agora? E agora, gente? Não tenho papéis para viajar, nem tíquetes para comer a bordo, não sei onde sentar, onde dormir. Só, perdido na multidão deste porão de navio. Euforia geral dos soldados, enfim livres de dois anos de sacrifício por uma causa que todos já sabíamos perdida...

De repente, uma voz grita meu nome! É um colega de quartel que, liberado, volta para o lar. Levanta-se, vem falar comigo entusiasmado. Ouviu-me a noite passada, quer saber o que estou fazendo no navio. Neste momento uma cortina se abre. Até ontem eu era considerado pequeno play-boy, filhinho do papai, protegido, apadrinhado. Hoje, a situação foi invertida.  Meus companheiros tipógrafos, aqueles com consciência política, são quase sempre comunistas. Me ajudarão a passar as filas de refeições, sair do navio, entrar clandestino no trem e chegar até Paris, onde finalmente me apresentarei no quartel geral.

Gente! A aventura não terminou! O coronel responsável escuta friamente meu depoimento e declara “Você está sob mandato de prisão. Retire-se”. Saúdo, meia-volta, saio do escritório e, na seqüência, do quartel. Novamente em rebelião aberta contra o Exército Francês! “Allons Enfants de la Patrie!..”

Ainda tenho um bom naipe, deputado amigo da família, gaullista ferrenho dos tempos da Resistência.

Sairei bem desta fase rocambolesca. E melhor: o comandante de Argel e o coronel de Paris terão direito a aposentadoria antecipada.

Alguém falou em heroísmo? Que nada! Heroísmo é quando você faz algo perigoso com medo. Se não tiver a percepção do perigo, é simples inconsciência...

Um comentário:

  1. http://www.aldeianago.com.br/artigos/7-cidadania/28074-a-revolucao-argelina-mudou-o-mundo-para-melhor-por-robert-maisey

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