O quartel entrou
Na data histórica do 21 de abril de 1961, um quarteto de
generais baseados em Argel, declarou que a Argélia continuaria francesa, mas
independente (sic), e isto apesar da política oficial do governo francês. O
discurso do General De Gaulle divide as opiniões. Já dividiu a França, quase em
estado de guerra civil. Cada um de nós se sente implicado no futuro de dois países.
E agora? Que vai ser dos dias seguintes?
Tenho 22 anos e, até esta tarde, vivi numa agradável e
sorridente alienação política. Claro, sempre achei bens preciosos a liberdade,
a justiça social etc., mas quem sou eu para mudar os rumos da humanidade?
Neste exato momento, debaixo da Via Láctea, um jovem
ex-estudante preguiçoso e mundano vai perder, de repente, sua virgindade
ideológica.
Como e por que estranho mecanismo intelectual palavras
emocionadas se atropelam ao sair sem ordem de minha boca? Estaria incorporado
por algum espírito desconhecido? Levanto a voz sem refletir. Ah! Se refletisse
um pouco antes de falar e me meter em situações absurdas!
Proponho sabotar as decisões do comando do quartel. Outro
soldado, certamente com maior maturidade política, apóia meu discurso com
coesão. Juntos, começamos a elaborar estratagemas.
Tudo na maior escuridão. Ninguém sabe ao certo quem está
falando.
De repente, a voz empostada de quem está acostumado a dar
ordens “Soldado Ganzelevitch! Logo você, que sempre deixei livre para ter um
quarto na cidade, que nunca passou uma só noite no quartel! Você, um
pied-noir!”
Pied-noir é quem nascera francês nas colônias do norte da
África. E, logicamente, com definida opção política. Pied-noir tem que ser
colonialista e reacionário com tendência fascista. Então, os jogos estão
feitos. Além de traidor, oposição serei. Oposição à loucura impensada de um
punhado de oficiais superiores que não mediu as conseqüências de suas opções.
Respondo ao comandante. Com certeza foram palavras homéricas,
algo como “Independência ou Morte” ou “Basta de tanto sofrer!”, a mão no peito, alguma frase que, um dia,
será repetida nas aulas de História... Sem mais o que deliberar, vamos dormir,
esperando o amanhecer para concretizar nossos planos.
O dia ainda não se declarou quando uma patrulha de paraquedistas
da vizinha Tipaza vem, com dois caminhões, me prender. Virei perigoso
terrorista. “Ah! Uili-uili-uili” dizem as mulheres árabes quando se lamentam.
Que fazer senão subir no fundo de um dos caminhões, enquadrado por militares
com cara de poucos amigos? E agora? Que vai ser de minha vida? Eles, tipo skin
heads, têm o hábito nefasto de torturar e matar sem piedade os argelinos
subversivos. Suponho que, no mínimo, irei passar por momentos desagradáveis. Bem,
será o que Deus quiser...
Argel está paralisada por causa das manifestações pro
“Algérie Française” que enchem ruas e sacadas com buzinadas e panelaços. Começo
a ficar realmente preocupado com meu futuro imediato. De repente, antes mesmo
de pensar, aproveito uma confusão do engarrafamento para pular por cima dos
militares, saltar do caminhão e desaparecer na multidão.
Apesar de ter longas pernas, nunca fui bom corredor, mas,
naquele dia, pulverizo com certeza todos os recordes olímpicos. Até o ano 2021!
No meu quarto, troco em segundos o uniforme para ter uma
aparência mais civilizada e desço, sempre correndo - milagre da juventude - as
ladeiras até o porto. O último navio com os recrutas que terminaram seu tempo
vai zarpar. Os pára-quedistas, eles de novo, formam barreira. Não passarei.
Volto a meu refúgio. Desta vez não mais
correndo, mas voando. De novo a farda, de novo o porto. A passarela vai
levantar. Escolho outra abertura no cordão de isolamento, invento um pretexto.
O militar me pede para ir rápido e regressar sem demora.
Sou o último a subir a rampa salvadora. Meu coração bate
como se fosse romper contra o peito, pronto para explodir. Respiração gelada
apesar do suor. Nunca me meti em parecida loucura.
E agora? E agora, gente? Não tenho papéis para viajar, nem
tíquetes para comer a bordo, não sei onde sentar, onde dormir. Só, perdido na
multidão deste porão de navio. Euforia geral dos soldados, enfim livres de dois
anos de sacrifício por uma causa que todos já sabíamos perdida...
De repente, uma voz grita meu nome! É um colega de quartel
que, liberado, volta para o lar. Levanta-se, vem falar comigo entusiasmado.
Ouviu-me a noite passada, quer saber o que estou fazendo no navio. Neste
momento uma cortina se abre. Até ontem eu era considerado pequeno play-boy,
filhinho do papai, protegido, apadrinhado. Hoje, a situação foi invertida. Meus companheiros tipógrafos, aqueles com
consciência política, são quase sempre comunistas. Me ajudarão a passar as
filas de refeições, sair do navio, entrar clandestino no trem e chegar até
Paris, onde finalmente me apresentarei no quartel geral.
Gente! A aventura não terminou! O coronel responsável escuta
friamente meu depoimento e declara “Você está sob mandato de prisão.
Retire-se”. Saúdo, meia-volta, saio do escritório e, na seqüência, do quartel.
Novamente em rebelião aberta contra o Exército Francês! “Allons Enfants de
Ainda tenho um bom naipe, deputado amigo da família,
gaullista ferrenho dos tempos da Resistência.
Sairei bem desta fase rocambolesca. E melhor: o comandante
de Argel e o coronel de Paris terão direito a aposentadoria antecipada.
Alguém falou em heroísmo? Que nada! Heroísmo é quando você
faz algo perigoso com medo. Se não tiver a percepção do perigo, é simples
inconsciência...
http://www.aldeianago.com.br/artigos/7-cidadania/28074-a-revolucao-argelina-mudou-o-mundo-para-melhor-por-robert-maisey
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