sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O CÃO DE FRAU GÖSSLING

 


Minha avó Annette, francesa pela mãe, inglesa pelo pai, chegou em Tanger com o marido russo na alvorada do século XX. Lá viveriam o resto da vida, incluindo os anos de chumbo da Segunda Guerra Mundial. Lá também passei uma parte de minha infância. Longe da cidade, nossa casa de Mujaidine testemunhava faustos esquecidos, mas a água era retirada de uma cisterna e não tínhamos eletricidade. De noite, após o jantar, ir até meu quarto com a lâmpada a petróleo acompanhado por imensas sombras que me seguiam pelas paredes do corredor era uma aventura atemorizante. Nunca, porém encontrei nenhum monstro peludo debaixo de minha cama.

No domingo, a avó me levava ao serviço religioso do pequeno templo protestante. Tédio dos sermões e dos cânticos. O melhor era, antes de voltar para casa, a visita à confeitaria Porte e ao guloso mergulho nas suas delicadas delicias. O caminho para Mujaidine seria mais alegre e mais curto.

Uma vez por mês, Frau Gössling nos esperava para o chá. Morava do outro lado da cidade. Íamos a pé até o centro. Só então encontraríamos um coche para nos levar até a bela casa da velha alemã, com torre, arcada e varandas, escondida num imenso jardim. Minha avó sempre fez questão de manter a amizade, apesar de nossos países estarem em guerra.

A sala onde nos esperava Frau Greta ficava no primeiro andar ao qual acendíamos por ampla escada de mármore. Ao longo da parede, armas medievais e, em cada patamar, uma ameaçadora armadura de cavalheiro. O que mais pode desejar um garoto de seis ou sete anos senão subir degraus de romance de capa e espada?

As duas senhoras saboreavam o chá com biscoitinhos e alguma fatia de torta enquanto eu – taça de chocolate - era autorizado a investigar um universo misterioso que poucos anos mais tarde seria minha referência imaginária ao ler Os três Mosqueteiros e O Conde de Montecristo. Havia também o magnífico pastor alemão que gostava de brincar comigo.

Entretanto o papo ia firme entre as velhas senhoras. A cidade inteira passava pelo crivo moralizante galo-teutônico. O escândalo da esposa do cônsul da Grécia, o divórcio do advogado do governador e a venda da mansão do príncipe de C. Vez ou outra uma risadinha comportada, um leque abanado, mais um biscoitinho?

O Tout-Tanger enfim reduzido a um monte fumegante de fofocas, algumas divertidas, outras escabrosas, Frau Greta pedia a seu motorista para nos levar até Mujaidine.

Mas daquela vez, durante a viagem de regresso, minha avó dava umas discretas risadinhas por trás de suas luvas. Chegando em casa, correu até o marido para lhe contar a última da velha alemã. No calor das confidencias indiscretas, ter-lhe-ia sussurrado: “Melhor falarmos mais baixo, porque meu cão compreende absolutamente tudo! ”

Dimitri Ganzelevitch

A Tarde, sábado 27 de novembro 2021

 

 

 

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