quinta-feira, 18 de novembro de 2021

GATOS, RATOS E O ARQUIVO PÚBLICO


Quando o presidente eleito da República Washington Luiz visitou Salvador, em meados de agosto de 1926, após o régio almoço oferecido pelo governador Góes Calmon, no Palácio da Aclamação, apreciou a exposição de documentos do Arquivo Público, mostruário preparado especialmente para ele com destaque para originais autógrafos de personalidades. O Presidente foi informado da relevância do acervo da instituição, o segundo arquivo mais importante do país, depositário de preciosidades documentais do Brasil-Colônia, do Império, bandeiras, mapas, plantas, retratos, periódicos. Na oportunidade, Afrânio Peixoto ofertou ao Arquivo a “Ode aos Bahianos” do Patriarca da Independência, José Bonifácio, autografado pelo autor.

O que Washington Luiz não ficou sabendo é que a rica documentação do arquivo tinha sido preservada graças aos gatos que afugentaram os ratos dos matos da colina da Praça Thomé de Souza, especificamente do Palácio Rio Branco onde por séculos foram acumulados num quarto do térreo, úmido e cimentado, documentos da história de nossa cidade, conforme contou o ex-governador Francisco Vicente Vianna, primeiro diretor do estabelecimento: “cômoda morada e sossegado ninho dos gatos de toda a vizinhança”.
Os gatos contribuíram para preservar os mais de 465 mil documentos acumulados e mais de um milhar de livros manuscritos, já encadernados, na “repartição”, ou depósito, sendo menos generoso com as palavras, que formaram o acervo inicial da instituição, inaugurada em 1890, com sede no Edifício da Escola de Belas Artes, na Rua 28 de Setembro. Parte do acervo já tinha sido transferido para a Biblioteca e Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Outros documentos tinham sido emprestados __ e não voltaram__ para estudos que contribuíram com a historiografia baiana e brasileira, a Inácio Accioly, Mello Moraes, Gonçalves Dias, Valle Cabral, dentre outros.
Por décadas o nosso Arquivo Público viveu de favor, em imóveis emprestados, a mesma sina da Biblioteca Pública que viveu em puxadinhos durante 107 anos (1812-1919) até ter uma sede para chamar de sua. O Arquivo foi instalado em cômodos da Escola de Bellas Artes, anos depois transferido para acanhadas salas num prédio da Rua do Tesouro; em 1919 obteve mais espaço com a locação na Rua Carlos Gomes do prédio da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia, de mudança para a Rua Chile, no hoje chamado Palacete do Tira Chapéu, em reforma.
Em 1942, o Arquivo mudou-se, na mesma Rua Carlos Gomes, para um edifício de esquina, onde permaneceu até 1980 quando transferido para a Baixa de Quintas, no imóvel de retiro do Padre Vieira, antiga Casa de Oração dos Jesuítas. Reformada e adequada para funcionar como leprosário, em 1787, e logo mais para isolamento de doentes de febre amarela, varíola e beribéri.
É o imóvel tombado pelo IPHAN, em 1949, mais pelo seu valor histórico do que arquitetônico, que a Bahiatursa ofereceu em 2005 como garantia em ação ajuizada por um escritório de arquitetura há mais de três décadas. Não tinha outro patrimônio a oferecer?
E aqui estamos, testemunhando a insanidade do Arquivo Público ameaçado de despejo por imprudência, burrice, ou má fé de quem alocou o imóvel como garantia de dívida e desleixo de quem deixou o barco correr. O juiz do processo determinou a transferência do valiosíssimo acervo de 40 milhões de documentos em dois meses; serão necessários, no mínimo dois anos e isso qualquer tribunal superior deve garantir. A ameaça que paira no ar não é sobre o bem tombado, nem sobre o acervo, é sobre o bom senso que, se não restabelecido, abre precedentes para o vale tudo.
Nelson Cadena
Artigo publicado no Correio*

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