POST MORTEM
Ah, amigos, morri! Simplesmente, morri. Não me perguntem como foi, o que senti, muito menos por quê. Fato é que morri. Era um dia de semana quando, sem que eu pudesse perceber, fui empurrado por algo desconhecido para fora dessa existência. Sentado em uma cadeira, de frente a um espelho d'água, nas Tuileries. Jornal no colo. Sozinho. Foi ali que morri. Quer morte mais coerente e privilegiada? Morrer em Paris, em uma manhã fria e ensolarada, após ler as notícias da página de cultura de um grande jornal local. Certamente, deve ter quem me acuse de esnobe. Sem problema. Morto já não se preocupa com qualificações. Que se danem os inquisidores!
Penso na minha morte naquele dia, em Paris. Idoso, sem filhos (e netos e bisnetos), relacionamentos breves e marcantes - nada muito duradouro. De duradouro, somente a solidão. Já perceberam como a solidão consome toda a nossa razão? É uma parvoice! Verdade é que depois que morri, afastei de mim um batalhão de invejosos. A tal da inveja é uma desgr... Aquele que a exerce pensa que a vida do invejado é um jardim florido. Não percebe os percalços que sua vítima enfrentou ou enfrenta. O seu status social é o que se define como o causador da inveja. Coisa mundana e abjeta. Deles, porém, estou livre. Que invejem outros que quiserem. A mim, a alforria da escravidão dos olhos de víbora.
Sobre morrer em Paris? Merecimento. Deixar a natureza fluir sua força incontrolável de fazer a tudo e a todos envelhecerem. Justo mesmo é morrer assim. Naturalmente. Sem nada abrupto, forçado, coagido. Morrer como uma obra de arte morre ao longo dos séculos. Devagar. Sem pressa. Até um dia cair no esquecimento (ou permanecer na memória).
Engraçado, amigos, é que o infarto atingiu impiedosamente meu coração, mas não tirou dele o amor que sinto por Paris. Uma graça essa cidade! Tem história, beleza, guerra e paz, harmonia, confrontos, solidão, amor, ternura, arte, sabedoria, poesia, noites especiais, maravilhosos dias.
Morri. Em Paris. Paris não morreu em mim. Viver em Paris é para poucos. Morrer em Paris e abraçado a Paris, após nove décadas de amor por Paris, é somente para parisienses de alma. Decidi. Podem os anjos me chamar. Ficarei rondando por aqui.
Leonardo Craveiro
VARANDA DE MIM
Projeto de incentivo à manifestação literária
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