Com mais templos que escolas, Brasil é o país onde pastor condena dorama
Em um país de contrastes agudos, igrejas evangélicas infiltram-se nas esferas cultural e social de uma forma que molda profundamente a juventude e as populações mais vulneráveis
Há mais templos que escolas e hospitais no Brasil. É o que revelou os dados do Censo 2022 do IBGE. No país, enquanto uma nova igreja surge a cada esquina, localizar leitos de UTI é uma jornada mais difícil, o que traça o retrato revelador de uma nação em encruzilhada. A jornada educacional de uma criança pode encontrar seu abrupto final antes mesmo de se aventurar além dos portões do ensino fundamental, mas as portas da escola dominical permanecem invariavelmente abertas, prometendo salvação e sabedoria espiritual, mesmo quando o saber acadêmico fica pelo caminho.
É um país de contrastes agudos, onde a fome por conhecimento muitas vezes é saciada com pregações em vez de ciência, e a busca por bem-estar é guiada mais por orações do que por políticas públicas efetivas. Neste cenário, a balança social pende não para o lado da infraestrutura essencial ou do desenvolvimento humano, mas inclina-se, com fervor, para a edificação de santuários espirituais, numa eloquente demonstração de fé que, embora inspire a alma, deixa o corpo e a mente clamando por mais.
Esse desequilíbrio não é trivial e aponta para uma realidade em que as prioridades coletivas podem estar sendo moldadas mais por valores religiosos do que por considerações seculares de bem-estar e desenvolvimento humano. A atual paisagem urbana e social do Brasil, marcada pela predominância de estabelecimentos religiosos sobre instituições de ensino e saúde, espelha uma dinâmica cultural onde a esfera da fé exerce uma influência profunda não apenas no tecido físico das cidades, mas também no psicológico e social de seus habitantes. A presença maciça de templos, especialmente nas regiões mais carentes de serviços públicos essenciais, sugere uma substituição ou, pelo menos, um complemento das funções tradicionalmente desempenhadas pelo Estado por instituições religiosas. Isso coloca as igrejas, particularmente as evangélicas, em uma posição de poder significativo.
A influência das instituições religiosas estende-se para além dos seus espaços físicos, infiltrando-se nas esferas cultural e social de uma forma que molda profundamente a juventude e as populações mais vulneráveis do país.
Para os jovens, as igrejas são espaços onde se estabelecem normas sociais, se forjam identidades e se delineiam os contornos da vida comunitária. As mensagens e valores veiculados nesses ambientes religiosos podem ter um impacto significativo não apenas na espiritualidade, mas também nas atitudes, comportamentos e na visão de mundo dos jovens. A doutrinação inculca uma cosmovisão que frequentemente privilegia a moralidade tradicional e a conformidade comunitária, o que pode levar a uma visão de mundo polarizada, onde os valores seculares e as influências culturais externas são vistos com desconfiança ou mesmo hostilidade.
A Assembleia de Deus em Pernambuco (IEADPE), sob a liderança perene da família Alves, apresenta um fascinante estudo de caso sobre o entrelaçamento da religião com a política e a gestão da imagem pública em um Brasil onde os templos superam as escolas e hospitais. A gestão cuidadosa de sua imagem, evitando os holofotes da mídia, confere à denominação uma aura de seriedade que mascara a complexidade e as contradições internas que são comuns a muitas instituições religiosas de grande porte. Esta postura reservada, contudo, não isola a igreja das dinâmicas de poder e influência que caracterizam a interseção entre religião e política no país. A presença de figuras políticas dentro da denominação, como o Pastor Eurico, deputado federal e defensor ferrenho do bolsonarismo, e as alegações de práticas questionáveis como suspeitas de “rachadinha” atingindo outros parlamentares membros da igreja, ilustram a complexa teia de interesses que se esconde por trás da fachada de piedade.
Apesar de todas as implicações, a denominação ganhou holofotes em fevereiro após um de seus pastores, Ailton Júnior, condenar o “coração de dorama”, gesto popular entre os jovens que surgiu com a ascensão das novelas e séries coreanas, associado à cultura K-pop. Na pregação, o pastor afirmou: “Não façam mais o coração de dorama nos púlpitos da igreja para tirar fotos. Vocês sabem o que é dorama? Quem aqui sabe o que é dorama? Defesa da androginia! Não há definição de macho, nem fêmea. E todo mundo fazendo o sinal de dorama porque são ignorantes”, disse.
A condenação de uma simples manifestação de afeto e pertencimento cultural revela um movimento preocupante que não apenas menospreza, mas também demoniza a diversidade e a globalização das expressões culturais. Esse episódio é sintomático de uma abordagem mais ampla, na qual figuras de autoridade religiosa buscam impor um monolitismo cultural que sufoca a individualidade e a livre expressão, relegando a riqueza de influências globais a uma ameaça espiritual. A severidade com uma expressão inofensiva é repreendida reflete uma rigidez dogmática que se opõe ao diálogo e à compreensão, subjugando a juventude a uma uniformidade que nega o dinamismo e a fluidez da identidade cultural na era moderna, um ato de censura que atenta contra a essência da liberdade.
Há uma tentativa insistente de policiar os corpos e as mentes dos fieis, impondo um conjunto restrito de normas comportamentais disfarçadas de virtude. Essa imposição, fundamentada em interpretações religiosas altamente específicas e subjetivas, colide frontalmente com o espírito de uma era marcada pela mescla e intercâmbio cultural. A ironia é palpável quando o mesmo fervor empregado para condenar símbolos de união e amizade poderia ser redirecionado para abordar questões mais prementes dentro da própria comunidade. É interessante observar a magnitude da ameaça percebida em um simples gesto, revelando uma desconexão profunda com a realidade juvenil, que vive numa constante navegação entre o local e o global, tecendo suas identidades em um mosaico de influências que vão muito além do alcance de qualquer púlpito.
Neste contexto, a crítica do pastor ‘anti-dorama’ ganha novas camadas de significado. Parece quase irônico que, em uma instituição tão profundamente enraizada nas estruturas de poder e tão ativa na arena política, o foco da censura moral recaia sobre gestos simbólicos de afeto entre os jovens. Esta escolha de batalhas revela uma desconexão notável com os desafios reais enfrentados pela sociedade brasileira, onde são as questões de corrupção e má gestão que têm impactos tangíveis e devastadores na vida das pessoas. Ao invés de abordar esses problemas sistêmicos com a mesma fervorosidade com que criticam a cultura pop, as lideranças evangélicas optam por uma abordagem que prioriza a manutenção de uma ordem moral conservadora, muitas vezes em detrimento de engajar-se de forma construtiva com as questões sociais e políticas mais prementes da atualidade. A discrepância entre as preocupações pregadas no púlpito e as ações no mundo político não apenas mina a credibilidade moral da instituição, mas também levanta questões sobre o papel das igrejas na sociedade brasileira contemporânea, especialmente em um país que enfrenta desafios educacionais e de saúde pública tão significativos.
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