domingo, 19 de novembro de 2017

LEILÃO DE VIRGEM

UMA CONEXÃO DE DI COM LUIS HENRIQUE
Este quadro de Di Cavalcanti, exposto na retrospectiva com que a Pinacoteca de São Paulo festeja os 120 anos de nascimento do pintor carioca, me remeteu ao Capítulo 5 da novela Nas margens, no leito seco (Salvador: Edufba, 2012), do ficcionista e historiador Luis Henrique Dias Tavares.
Ouso reuni-las e compartilhá-las com vocês.
Bom domingo!
Luis Guilherme Pontes Tavares 

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“LEILÃO DE VIRGEM
Voltei para casa de Madame Jannete pouco antes das três da tarde. Ela abriu a porta e recebeu-me com um abraço. Entrei. A sala estava colorida e alegre, com tapete novo, sofá e cadeiras enfeitadas, jarro de flores enriquecido com rosas vermelhas. As mulheres vestiam longos e sapatos altos. Sheila sorriu-me. Senhores solenes apresentavam-se completos, com paletó e calças azuis, colete e gravata. Conversavam com as suas preferidas.
Uma nuvem de incenso cheiroso precedeu a entrada da moça loura às quatro da tarde. Estava vestida de noiva, coroa de flores brancas na cabeça, véu branco, sapatos altos brancos, vistos apenas nos bicos. Silêncio. Os senhores calaram as conversas. Madame Jannete bateu palmas:
– O leilão está marcado para às seis horas. A noiva vai se recolher e só voltará quando for conveniente. A casa não funciona hoje.
Eu anotava no papel cada gesto e cada palavra, tudo nos conformes com as lições de senhor Domingos. Em certo instante tive tentação de ir correndo até o Correio de Notícias. Estava entre ir e não ir quando bateram na porta. Madame Jannete foi abrir e logo revelou um senhor de paletó azul, diamante na lapela, calça listrada, sapatos pretos lustrosos, cabelos penteados. Todo ele perfume. Tinha uma pasta na mão.
A moça vestida de noiva retornou. Logo surgiu um homem gordo com um livro escuro na mão. Apresentou-se:
– Alguns dos senhores me conhecem. No caso de não serem todos, eu tenho a honra de apresentar-me. Eu sou o tabelião de notas Bonifácio Silva. Sou bastante conhecido nesta cidade. Hoje vou presidir este leilão. Um, dois, três, quem dá mais?
Um dos homens sentados levantou-se:
– Muitos das senhoras e dos senhores sabem que eu sou dono de usina em Santo Amaro da Purificação. Sou neto do Visconde do Bom Tempo. Minha usina está produzindo normal, conforme é do conhecimento da Madame Jannete.
O senhor gordo urgiu:
– Quanto o senhor dá pelo cabaço desta moça?
O usineiro respondeu:
– Dou cem quilos de açúcar.
Madame Jannete decidiu:
– Recuso. Esta virgem vale mais do que duas sacas de açúcar.
Um jovem magro e alto ergueu a mão:
– Sou dono de loja na Rua Chile. Ofereço sociedade a esta moça.
Madame Jannete manteve:
– Recuso. Esta virgem vale mais do que possa render sociedade com qualquer loja.
O homem gordo leiloou:
– Quem dá mais, quem dá mais?
Foi a vez do coronel Ramiro, diamante faiscando, voz alegre:
– Ofereço uma fazenda de cacau em Ilhéus, com safra garantida duas vezes ao ano. Acrescento 100 contos de Réis a esta bela virgem.
Madame Jannete dançou as mãos:
– Aceito, coronel. Pode levar a virgem para o quarto. O senhor é o vitorioso deste leilão.
Os dois vencidos caminharam para a porta, abriram e saíram sem ao menos darem boa noite.
O tabelião cochichou com Madame Jannete e ela o conduziu o quarto que ela ocupava.
Eu vi uma oportunidade de ir ao jornal transmitir o resultado do leilão. Chamei Sheila com a mão e pedi para informar a Madame Jannete que ia ao jornal e logo regressaria. Ela puxou-me pela orelha, abriu a porta e eu saí numa corrida até as escadas do Correio de Notícias. Abri a porta, vi que o senhor Mário Campos não estava e caminhei rápido para o lado do senhor Domingos, a quem entreguei as minhas anotações do que assistira. Deixei-o lendo e rindo. Desci as escadas do Correio de Notícias e embalei corrida de volta à casa de Madame Jannete. Adianto a manchete que o jornal publicou no dia seguinte: “Coronel do cacau ganha o leilão de uma virgem”.
Cheguei na casa de Madame Jannete com os bofes na boca. Bati na porta, Sheila abriu. Logo foi possível assistir a comemoração ruidosa do coronel Ramiro. Ele exibia uma camisola de dormir marcada com sinais de sangue. Ria com todos os dentes. Batia as mãos, a camisola na direita e proclamava:
– Ainda sou muito homem.
A moça dos cabelos louros surgiu sem o vestido de noiva e a coroa da virgindade. Cobria-se agora com robe colorido. Veio assim para o meu lado e segurou a minha mão direita. Madame Jannete vibrou:
– Viva o coronel Ramiro! Inaugurou uma linda mulher.
Respirou fundo e repetiu que a casa estava fechada. Os senhores que ficaram apanharam as mãos das suas preferidas, Sheila sorrindo, dengosa. Sumiram no corredor. A sala ficou vazia.
O homem gordo puxou uma cadeira para o centro da sala, retirou o jarro com flores e as figurinhas de porcelana que a festejavam, abriu o livro escuro e disse:
– Foi tudo como desejavam. Dou os meus parabéns ao Coronel Ramiro, mas vamos aos conformes. Coronel Ramiro e Madame Jannete queiram se sentar para ouvir o que tenho para lhes comunicar.
A moça loura puxou-me pela mão e nos acomodamos em duas cadeiras próximas. Madame Jannete nos olhou como se fosse reclamar, mas ficou no olhar severo. O homem gordo sorriu:
– Madame Jannete sabe que este leilão foi uma afronta às leis do país. Tornou-se questão para inquérito policial, julgamento no Tribunal de Justiça e condenações severas.
Silêncio. O homem gordo voltou:
– A solução que encontrei foi a doação da fazenda de cacau e cem contos de Réis para uma órfã de pai e mãe, a moça aqui presente. O coronel justificará a doação por causa do seu espírito cristão.
Madame Jannete levantou-se:
– E eu, no que fico? Posso ser ao menos a tutora. Esta moça tem 16 anos.
O homem gordo ensaiou uma careta:
– Será suspeito, Madame. A senhora não tem o menor vínculo de parentesco com a moça. Vai dar na senhora ser expulsa do Brasil. É o que deseja?
Madame Jannete sacudiu a cabeça:
– Vou deixar o Brasil depois de recolher o dinheiro da venda de minhas casas na Bahia e no Rio de Janeiro. Vou para a França com o dinheiro que tenho no Lloyd Bank. Tenho noivo esperando-me.
O coronel ergueu a mão direita e disse:
– Confirmo as doações que fiz para esta moça.
O tabelião Bonifácio Silva virou-se para a moça de cabelos louros:
– Qual a decisão da senhorita?
Ela apertou a minha mão e ficou de pé. Falou na sua língua misturada, contudo fácil de entender:
– Não quero ser puta. Desejo casar com este jornalista. Se não fizerem como quero, mato-me com este veneno.
Balançou com a mão direita um frasquinho. Desceu o silêncio de Deus. A moça continuou:
– Meu nome é Gina Bartilotti. Sou italiana de Florença.
O coronel Ramiro sentiu o silêncio do Senhor Deus e se rendeu:
– Nada de morte. Vamos obedecer a vontade da senhorita Bartilotti. Eu compenso o senhor Bonifácio pelos atestados que a senhorita deseja. O senhor jornalista vai atender esta moça?
Eu não vou escrever que estava sob o silêncio de Deus. Muito pelo contrário, eu estava sob a força da moça de cabelos louros. No meu interior, sentia a perda de minha mãe. Respondi:
– Aceito a decisão da senhorita Gina.
Gina mantinha o frasquinho na mão erguida.
O tabelião Bonifácio falou:
– Coronel Ramiro...
O coronel abriu a pasta, contou notas e notas de contos de Réis e entregou ao tabelião. Ele recebeu, abriu o livro, inutilizou o que tinha escrito e redigiu certidões de maioridade e de casamento para Gina Bartilotti e José Antonio da Cunha Saraiva de Souza Lima. Virou o livro aberto para as nossas assinaturas, Madame Jannete e o Coronel Ramiro como testemunhas. Gina largou a minha mão, mudou o frasquinho para a mão esquerda e assinou. Coube-me assinar em seguida.
Sem largar o frasquinho, Gina recebeu as certidões que o tabelião lhe estendeu. Passamos num repente, eu, dos 17 para 22 anos. Gina, dos 16 para 21, casados. Tivemos a certidão da doação de uma fazenda de cacau no município de Ilhéus.
O coronel contava notas e notas de contos de Réis. Fez um bolo, dispôs num saco, amarrou e nos estendeu.
– Aí estão 80 contos de Réis. Vão permitir que entregue 20 contos de Réis como presente de vocês dois para Madame Janette.
Gina e eu ficamos calados. Ele contou notas e notas e passou para Madame Jannete. Ela apertou no peito. Era tarde. Mais que noite. Madrugada.”

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