A dupla vida dos judeus ultraortodoxos em Israel
A israelense Batia Leora Deil em uma loja de roupa em Tel Aviv, em fevereiro deste ano - AFP
Ao ver um grupo de judeus ultraortodoxos vestidos com grandes
casacos pretos aproximando-se da calçada, Shmuel se assusta e baixa a cabeça
para se esconder. Ortodoxo de dia, Shmuel se transforma em ateu à noite e teme
ser reconhecido.
Sem dúvida, ele também é um “temeroso de Deus”. Ao menos
oficialmente, pois há quase dez anos não acredita na entidade, mas mantém as
aparências por medo de ser excluído de sua comunidade, perder o seu trabalho e
ser privado de conviver com seus filhos.
“Ninguém do meu círculo social sabe”, admite Shmuel (nome
fictício), de aproximadamente 30 anos. “Nem minha esposa, nem meus pais,
ninguém!”.
Essa noite, vai a um bar de Jerusalém, um lugar proibido por sua
comunidade, para se encontrar às escondidas com outros judeus ortodoxos que,
como ele, perderam a fé, mas que continuam fingindo.
Segundo Yair Hass, diretor da Hillel, uma associação que ajuda
as pessoas que querem sair do mundo religioso, em Israel há dezenas de milhares
de “anusim”, pessoas nessas condições.
O termo
“anusim”, que literalmente significa os “obrigados”, é historicamente utilizado
para os judeus que se viram forçados a se converter ao cristianismo durante o
período da Inquisição, mas que continuavam praticantes do judaísmo em segredo.
Hoje, a
expressão é usada para descrever justamente os ortodoxos que, ao contrário,
deixaram de ser praticantes.
– Comer
porco –
Shmuel
admite que vive com um medo constante de ser descoberto. Quando ninguém o
observa, transgride normas que já não acredita, como comer porco, algo vetado
pelas leis judaicas.
“Um dia,
comecei a me questionar sobre tudo que já tinham me ensinado e todas essas
regras estritas que nos são impostas desde a infância. Para mim, tudo isso já
não faz sentido algum”, explica Shmuel, que é de uma família do movimento
chassídico em Jerusalém.
Junto a
ele, em um bar pouco iluminado da cidade, cerca de vinte homens e mulheres
conversam, enquanto bebem. O grupo se formou no Facebook com nomes falsos e
todos temem que alguém se infiltre e os descubra.
As vestes
largas, os cortes de cabelo, as barbas e os cachos os delatam como membros da
comunidade ortodoxa que tanto gostariam de deixar.
–
“Insuportável” –
Viver fingindo todo o tempo é algo extremamente difícil para os
“anusim”, diz Yair Hass. “É praticamente insuportável”.
Avigail, que usa uma elegante peruca ruiva, sabe o sofrimento que
é estar nessa vida dupla.
“Teve um momento em que eu quis morrer. Dizia a mim mesma: isso
vai ser assim, até o fim da vida?”, confessa a mulher.
Cerca de 10% dos nove milhões de israelenses são judeus
ultraortodoxos, e cada aspecto de suas vidas é regido por princípios
religiosos.
Essa comunidade “te castiga de forma severa caso você se desvie do
caminho ou não respeite as regras”, ressalta Hass, que menciona casos de
crianças “anusim” expulsas da escola pelos rabinos ao saber que seus pais levam
uma vida dupla.
“Se me descobrirem, eu perco tudo. Meus filhos, meu trabalho”,
afirma Shmuel. “Isso é um mundo à parte”.
Avi Tfilinski decidiu assumir-se depois de doze anos de vida
dupla, mas desde então já não pode ver seus seis filhos. Seu pai proibiu que
todos do seu entorno entrassem em contato com ele.
“Uma vez, vi quatro filhos meus no mercado de Mahané Yehuda”, em
Jerusalém, conta o homem de cerca de 40 anos, que antes era rabino.
“Fazia três anos que não os via, disse ‘Ohhh’ e reconheceram minha voz, pularam
em meus braços e me beijaram, chorando”.
– “Livre” –
Te consideram um criminoso”, conta Batia Leora Deil, de 40 anos,
que após seis anos de vida dupla perdeu a guarda dos seus quatro filhos. Agora,
seu mudou para perto de Tel Aviv, uma cidade mais liberal, e começou a estudar
cinema.
Por outro lado, se integrar ao mundo laico quando mal se conhece
os códigos também não é uma tarefa fácil, reconhece Yehuda Shushan, de 33 anos.
“Você chega a um novo universo no qual não conhece nada”, explica,
antes de acrescentar: “mas traz uma sensação de liberdade que vale a pena”.
“Hoje sou livre para ser quem eu quiser ser e para fazer o que bem
entender”, diz Shushan.
Livre? “Quem sabe um dia”, lamenta Shmuel, que pensa em ir contra
as ordens dos rabinos e votar em um partido laico nas eleições legislativas
agendadas para o próximo 2 de março.
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