quarta-feira, 24 de junho de 2020

NÓS NÃO TEMOS MEDO!

Cláudio Marques



Quarentena – dia 97
“O meu menino estava sentado exatamente nesse banco, no domingo passado”, me contou Maurício Santos, pai de Micael, 11 anos (faria 12 anos em setembro). Enquanto conversávamos, eu observei Maurício, demoradamente. Rosto cansado, de alguém maltratado pela vida. Olhar indignado, a personificação da revolta. Alguém que busca força e agradece a cada gesto de solidariedade em meio à ignorância e bestialidade da nossa sociedade. Impossível não estar ao lado de Maurício e de Joselita Santos Meneses, mãe de Micael.
Maurício, Joselita e família, hoje, representam a civilidade contra a besta fera que nos domina, atravanca a Salvador de 2020. Lutar com eles é brigar por todos nós. Mantermo-nos humanos, minimamente dignos.
Policiais buscam intimidar as pessoas presentes ao ato.
Enquanto escuto Maurício, quatro viaturas com policiais fortemente armados passam por nós. As armas para fora do carro. Eu sinto medo. Os policiais olham de forma ostensiva para nós, encara os manifestantes. Eles não estão ali para nos proteger. Três outros, a pé, nos filmam.
Estamos em um ato em memória a Micael, que foi assassinado por um policial. Segundo testemunhas, o policial entrou em um dos becos do Vale das Pedrinhas atirando. Pouco menos de uma semana atrás. Esse tiro dilacerou toda uma família e nos fez retroceder mais algumas décadas. Sem justiça, não haverá paz. Para ninguém.
Uma viatura passa por nós, mais uma vez. Maurício reconhece o policial que matou seu filho. Hamilton Borges, da Reaja, organização responsável pelo ato, grita na direção da viatura: “Nós não temos medo de vocês!! Vocês não vão nos calar!!”.
Hamilton e Andrea: “Nós não temos medo!”
Eu tenho medo. Medo de me aproximar das viaturas para fazer uma foto melhor. “Nós não temos medo!!”, grita Andréa Beatriz, coordenadora da Reaja. Os jovens da organização e a comunidade local entoam “Nós não temos medo!”.
Como não sentir medo? Todos nós sentimos. Mas, a imobilidade nos fará cada vez piores. “Eu tenho medo, mas como não resistir, não lutar?”, me perguntou um jovem.
Esse ato corajoso, em meio à pandemia, reuniu poucas pessoas. Compreensível por um lado, mas deprimente por outro. A onda de indignação jamais vai bater à nossa porta? A filha de George Floyd, assassinado por um policial em Minnesota, sorria durante uma entrevista: “O meu pai mudou o mundo”. Talvez, uma parte dele. Salvador continua a mesma.
Fim do ato, eu entro no carro do realizador Bernard Attal. Outros três jovens da Reaja vão com a gente. Uma das viaturas passa a nos seguir. Carro grudado no nosso. Como não temer quem deveria nos proteger? Hamilton me liga e pede cuidado! A viatura nos nos segue até a saída do Vale das Pedrinhas. Terror psicológico.
Ainda no carro, já aliviados, escuto os jovens da Reaja. Eu fico sabendo que a organização recebeu duas toneladas de alimentos do MST. Os jovens estavam de virote, trabalhando para poder entregar as cestas básicas na comunidade do Engenho Velho e ali mesmo, no Vale das Pedrinhas.
O jogo vai ser esse: o nosso futuro está com esses jovens. Não os percamos de vista!

Nenhum comentário:

Postar um comentário