sábado, 27 de junho de 2020

ENTRE O INFERNO E O PARAÍSO


A biblioteca é meu espaço preferido para trabalhar ou simplesmente assumir minha preguiça congênita a passear pelo youtube. De sua origem, nos meares do século XIX, conservou portas, janelas, bandeiras e assoalho. As paredes foram invadidas por livros e quadros. Gostou da descrição?

Pois, apesar do cenário, este refúgio virou um inferno. Na rua, caçambas e escavadeiras da alvorada até bem depois do anoitecer. Minha mesa de trabalho parece uma extensão do deserto de Atacama, de tanta poeira amontoada, e o computador enferrujou. Ninguém sabe quantos trabalhadores adoecem em tempo de pandemia. Meu tossir matinal não é Corona, mas Pejota. O Estado iniciou obras há mais de quatro meses sem informar moradores e comerciantes do que se trata, quanto tempo viveremos na barulheira e na lama, nem quanto custará a nossos bolsos sofridos.


O que já tem cara de pronto, perto do largo de Santo Antônio, é simplesmente pavoroso, tamanha falta de compreensão do que é um bairro histórico. Tanto poderia ser na Pituba ou em Massaranduba. E mais: ao que parece, nem vão retirar os abomináveis postes e as fiações macarrónicas que sempre espantam turistas. O IPHAN, como de costume, caladinho. Mais uma vez: o Estado não tem amor a seu patrimônio, mesmo quando tombado pela UNESCO.
Só me resta pegar um livro e me mudar para o fundo da casa. De repente, o paraíso. O perfumado jasmim me dá as boas-vindas. O amigo Baudelaire teria adorado poder descansar – beauté, calme et volupté – como eu, no terraço, olhando para o jardim onde voam papagaios, rolinhas, bem-te-vis, beija-flores e cem outros pássaros cujos nomes desconheço. Saguis pulam de pitangueira em aceroleira, de palmeira imperial em bananeira, tudo por mim plantado, no meio da cidade do Salvador, durante estes últimos trinta anos. Muito além das grades que me separam da encosta, mesmo sem ser poeta, como não mergulhar no onirismo da baia que estende seus tapetes, um dia de aço, outro de turquesa? Com um pouco de sorte, poderei admirar a vela alva, triangular, pesada e lenta de um dos últimos saveiros flutuando entre negros cargueiros. Pancetti e Nicolas de Staël em 3D.



Quando anoitece, um colar de luzes prova que existe vida no imenso palácio branco que ancorou há mais de um mês, sem que ninguém saiba o motivo, com certeza grave, que o obriga a tão longa sonolência. A empresa falhou? Uma peça essencial quebrou e não consegue importar outra? Algum drama a bordo, como nas novelas de Agatha Christie?

Fecho os olhos. No balanço da rede, que é a melhor invenção do homem, deixo o tempo passar, esquecendo as escavadeiras, o psicopata que nos governa, o navio fantasma e a Pucky que late para lembrar que é hora da ração.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde sábado 27/06/20

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