A biblioteca
é meu espaço preferido para trabalhar ou simplesmente assumir minha preguiça
congênita a passear pelo youtube. De sua origem, nos meares do século XIX,
conservou portas, janelas, bandeiras e assoalho. As paredes foram invadidas por
livros e quadros. Gostou da descrição?
Pois, apesar
do cenário, este refúgio virou um inferno. Na rua, caçambas e escavadeiras da
alvorada até bem depois do anoitecer. Minha mesa de trabalho parece uma
extensão do deserto de Atacama, de tanta poeira amontoada, e o computador
enferrujou. Ninguém sabe quantos trabalhadores adoecem em tempo de pandemia.
Meu tossir matinal não é Corona, mas Pejota. O Estado iniciou obras há mais de
quatro meses sem informar moradores e comerciantes do que se trata, quanto
tempo viveremos na barulheira e na lama, nem quanto custará a nossos bolsos
sofridos.
O que já tem
cara de pronto, perto do largo de Santo Antônio, é simplesmente pavoroso,
tamanha falta de compreensão do que é um bairro histórico. Tanto poderia ser na
Pituba ou em Massaranduba. E mais: ao que parece, nem vão retirar os abomináveis
postes e as fiações macarrónicas que sempre espantam turistas. O IPHAN, como de
costume, caladinho. Mais uma vez: o Estado não tem amor a seu patrimônio, mesmo
quando tombado pela UNESCO.
Só me resta
pegar um livro e me mudar para o fundo da casa. De repente, o paraíso. O
perfumado jasmim me dá as boas-vindas. O amigo Baudelaire teria adorado poder
descansar – beauté, calme et volupté – como eu, no terraço, olhando para o
jardim onde voam papagaios, rolinhas, bem-te-vis, beija-flores e cem outros pássaros
cujos nomes desconheço. Saguis pulam de pitangueira em aceroleira, de palmeira
imperial em bananeira, tudo por mim plantado, no meio da cidade do Salvador,
durante estes últimos trinta anos. Muito além das grades que me separam da
encosta, mesmo sem ser poeta, como não mergulhar no onirismo da baia que
estende seus tapetes, um dia de aço, outro de turquesa? Com um pouco de sorte,
poderei admirar a vela alva, triangular, pesada e lenta de um dos últimos
saveiros flutuando entre negros cargueiros. Pancetti e Nicolas de Staël em 3D.
Quando
anoitece, um colar de luzes prova que existe vida no imenso palácio branco que
ancorou há mais de um mês, sem que ninguém saiba o motivo, com certeza grave,
que o obriga a tão longa sonolência. A empresa falhou? Uma peça essencial
quebrou e não consegue importar outra? Algum drama a bordo, como nas novelas de
Agatha Christie?
Fecho os
olhos. No balanço da rede, que é a melhor invenção do homem, deixo o tempo
passar, esquecendo as escavadeiras, o psicopata que nos governa, o navio
fantasma e a Pucky que late para lembrar que é hora da ração.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde sábado 27/06/20
Nem me fale na PEJOTA!
ResponderExcluirTRISTE e INCOMODO
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